sexta-feira, outubro 15, 2010

Lições de Neruda sobre a morte lenta

Publicação: 03 de Outubro de 2010 às 00:00

Nelson Patriota - escritor

São inumeráveis os modos de viver, como dão mostras os tantos retratos da história da sociedade humana, de hoje e de ontem, quer no rico Norte, quer no contraditório Sul. Vive-se em palacetes como em favelas, em casas de alvenaria e em mansões suntuosas, em abrigos improvisados ou debaixo de uma ponte, logo que a enchente que devastou a cidade se consuma.

Se são diversos os modos de viver, não serão menores os de morrer, sobremaneira se se trata de morrer lentamente. A esse respeito, o escritor Valério Mesquita, com a habitual perspicácia que marca seus textos não humorísticos, citou em seu artigo publicado nesta TN na semana passada, um verso do chileno Pablo Neruda comentando três formas de se morrer lentamente: evitando-se uma paixão, não se permitindo pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos, repetindo-se todos os dias os mesmos trajetos. Pode-se supor, então, que atendendo às recomendações implícitas nos conselhos do poeta, alcance-se uma idade longeva.

Por outro lado, pode-se aplicar a receita nerudiana aos cenários do momento. Foi com esse procedimento que Valério esboçou um conjunto de joco-sérios cenários da vida social brasileira em que inevitavelmente se converge para uma morte lenta.

Retomando, todavia, o tríduo nerudiano, é possível se perceber aí que o que está em causa não são os meios de se alcançar uma vida longa. Nessa área também não reina consenso entre médicos, xamãs, conselheiros alimentares e pregadores religiosos. O que apontam os versos do poeta citados por Valério é, antes, um tipo de morte que parece se apossar daqueles que se negam aos arroubos da paixão, ou que insistem em seguir cegamente os conselhos sábios ou, ainda, que nunca se permitem fugir aos hábitos longamente cultivados. Em qualquer desses casos, incorre-se numa morte lenta, como evidencia o poeta de “Canto Geral” e “Crepusculário”. E é evidente que está a desancar as pessoas por demais conservadoras, mas também aquelas outras que parecem sensatas em demasia, sensatas para além dos limites que separam sensatez e teimosia, sensatez e lucidez, sensatez e intransigência.

O preço de confundir o razoável com o excessivo é morrer-se lentamente, ainda quando a vida pulsa a pleno vapor e, entretanto, a pessoa não se dá conta disso. Exatamente por embaralhar ideias que, se postas claramente, a levariam a viver de maneira sã, aproveitando as oportunidades da vida, ainda que fosse curvando-se aos ditames de uma paixão avassaladora, aliás, a mais radical das três formas de viver recomendadas pelo poeta chileno. Fugir aos conselhos sensatos ou à repetição de certos hábitos são atitudes só em parte ousadas. De fato, suas consequências ficam muito aquém daquelas desencadeadas pela primeira. Qualquer semelhança com outras recomendações feitas pelo pseudo-Borges de “Momentos”, poema que se tornou tão ou mais popular do que as melhores criações poéticas do verdadeiro Borges, pode não ser mera coincidência. Aí se lê, por exemplo, que se o poeta pudesse dispor de uma segunda vida, não a desperdiçaria com excessivas leituras e escrituras. Seu foco seria voltado para experimentar coisas diametralmente opostas: cometeria mais erros, não tentaria ser tão perfeito, seria mais tolo etc.

Em suma, o pseudo-Borges, a exemplo do genuíno Neruda, prega uma obediência naturalista à vida, como a pensaram Rousseau e Thoreau, no passado, ou Bob Dylan, Dylan Thomas e outros mais avizinhados de nossa época. Ou ainda um Manoel de Barros, no atual momento da poesia brasileira.

O genuíno Borges, todavia, não recuaria diante do espírito naïf do seu pseudo alter ego. Antes, o esnobaria, assacando contra ele um único verso do seu “Fragmentos de um Evangelho apócrifo” (aplicável também como antídoto ao primeiro conselho de Neruda), onde se lê: “Felices los amados, los amantes y los que pueden prescindir del amor”. É certo que nesse versículo nada se comenta sobre a morte. Em compensação, a vida resulta celebrada de forma inequívoca.

FONTE: Tribuna do Norte - Natal

http://tribunadonorte.com.br/

FOTO: lilies-n-glaze

By: Frederick Dunn
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