sábado, maio 23, 2009

Guerra ao silêncio - POR HERON MOURA | Professor de linguística da UFSC


LITERATURA
Guerra ao silêncio
Obra-prima de Mario Benedetti, A trégua tem muitos paralelos com dois dos romances de Machado de Assis
Qualquer curso de introdução à literatura vai te dizer que a literatura é o não dito. Que a figura central da modernidade é a elipse, a elisão, a subtração de palavras. Mas eu tenho dúvidas quanto a essas lições iniciais. Sempre tive. É claro que a redundância e a excrescência são defeitos de estilo. Nem tudo precisa ser dito. Mas isso se aplica ao estilo, à elegância da frase, o que vale tanto para a literatura quanto para o jornalismo. Talvez até para os ofícios de uma repartição pública. Não creio que a literatura seja uma questão de estilo. O estilo é a arte do domador, do cavaleiro. A literatura é a arte impossível de criar novos animais na nossa taxionomia imaginária.

A literatura é falar demais, é um excesso, é uma repetição exacerbada de um tema composto de palavras. O principal inimigo da literatura é a morte, e o silêncio que a circunda. Não creio que nem mesmo a ironia, tão literária, seja uma figura da supressão, uma espécie de elipse do pensamento. A meu ver, a ironia serve para exprimir dois pensamentos com uma só frase, fazendo proliferar as mensagens, e não suprimir uma parte da linguagem. A ironia é parente da metáfora, que também junta duas ideias em uma. E a metáfora é claramente uma profusão, não uma contenção. Quem quer ser objetivo e dizer pouco não usa de ironias. Cala ou diz o mínimo possível.

Um verdadeiro escritor, não. Ele não cala. Ele não diz o mínimo possível. Ele fala quando muitos outros calariam. Porque ele teme a morte embutida na linguagem.

Essa reflexão me veio à mente ao ler o romance mais famoso de Mario Benedetti, escritor uruguaio que nasceu em 1920 e que morreu domingo passado, em Montevidéu. Refiro-me ao romance A trégua, publicado em 1960, e que li na versão brasileira (L&PM, 2008, tradução de Pedro Gonzaga).

O tema do romance não parecia atraente. Funcionário do comércio prestes a se aposentar, com 49 anos, viúvo, três filhos adultos, quase um velho, pensa na vida de ócio que tem pela frente, e termina se envolvendo com uma moça de 24 anos, colega de escritório. Mais um romance sobre o tédio e sobre uma breve interrupção do tédio, pensei, ao ler a contracapa na livraria do aeroporto. Mas nunca tinha lido nada de Benedetti, que é considerado um dos grandes escritores uruguaios, e comprei o livro. Além de tudo, era curto.

Mas quantas palavras cabiam nessa estreiteza! É isso que engana na percepção inicial de que alguns escritores, como o nosso Machado de Assis, são escritores da supressão, da elipse, da conta de subtrair. Romances curtos, frases curtas. Mas a questão é que, nessa margem de estreiteza, o que se diz é muito, como um rio caudaloso entre margens estreitas. Há pouco a dizer na vida de Martín Santomé (o protagonista de A trégua), assim como a vida de Bentinho (Dom Casmurro) não foi cheia de peripécias. Um não escritor resumiria ao máximo essas vidas sem eventos, semifrustradas, tateantes. Um escritor dá voz a esses seres de papel e palavra, e a literatura nasce a partir de uma semivida. A literatura cria animais imaginários.

Há muitos paralelos entre A trégua e os romances de Machado de Assis, guardadas as proporções e as distâncias. Martín termina a vida sozinho, considera-se um projeto de vida que falhou, é irônico e cruel, não se ilude sobre si mesmo, embora possa tentar iludir aos outros. É um ser incompleto. Até a obsessão com o adultério está presente. Bentinho tem um ciúme retrospectivo de Capitu, que envenena sua vida. Martín tem ciúmes futuros de Avellaneda, a moça pela qual se apaixona.

Na famosa frase final de Memórias póstumas de Brás Cubas, o personagem confessa: “Não tive filhos. Não transmiti o legado de nossa miséria”. Martín consegue ser ainda mais miserável, pois ele teve filhos, mas se sente solitário entre eles. Não se comunica com eles. Não os conhece, embora os ame, em graus diferentes.

O problema é que Martín deixa tudo pela metade (menos no trabalho de contador, que ele odeia). Perdeu a mulher cedo, e seu casamento ficou pela metade. Tem dúvidas sobre o que teria acontecido se a mulher dele não tivesse morrido no parto do terceiro filho. O casamento teria mantido a mesma intensidade? A morte da esposa, ele pensa cruelmente, o poupou da incompletude de seu casamento.

Até a bondade de Martín é incompleta. Ele tem impulsos para o bem, mas por uma lei de equidistância se mantém a meio caminho entre ele e os outros. Termina sendo apenas gentil, mas não afetuoso. Ele se mantém equidistante até de si mesmo, entre o que é e o que sonhou para si.

Como uma vida dessas poderia gerar literatura? A literatura vem da guerra ao silêncio, embutido no ócio da aposentadoria, na morte iminente (ele se vê como um velho), na falácia de sua família.

Então Martín conta sua vida num diário, que é a matéria do romance. E conta os detalhes do dia a dia, registra o andamento de seu tédio. Há frases cruéis, que de novo me lembram Machado: “Graças a um pressentimento, posso crer em Deus e acertar, ou não crer em Deus e também acertar. Então? Talvez Deus tenha um rosto de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando sai o preto e vice-versa”. E a sua angústia ao perceber que não lembra mais do rosto de sua esposa; lembra apenas do toque em seu corpo: “Por que as palmas de minhas mãos têm uma memória mais fiel do que minha memória?”.

A literatura é a trégua do título do romance. A morte é a guerra. A morte e o silêncio. Se Martín mal se lembra de sua mulher, algo morreu, é claro, mas sua não memória persiste na linguagem que ele usa. Ele se resigna diante do esquecimento, mas não cala diante dele. Calar seria morrer de novo.

Pois bem, aí acontece Avellaneda, a Capitu dele. Na verdade, nem é uma Capitu; não é tão bela, não é tão exuberante. Mas é simpática, e o conjunto dos detalhes dela, talvez insignificantes isoladamente, como uma soma ganha vida, e o acossa.

A trégua é também essa moça, uma trégua no seu “destino escuro”. Mas eu me pergunto se o amor gerou a literatura ou se a literatura gerou esse amor. Pois o romance, que é um diário, começa antes de Martín encontrar Avellaneda; a moça aparece depois. A literatura não conta a história do amor; ela propicia o aparecimento do amor. Num autor aparentemente tão pessimista, não é essa uma crença espantosa num mundo de céticos? E me volta de novo à mente o nosso Machado. Se ele era tão pessimista, para que contar a história de seres fracassados quando a vida já passou (a narrativa no fim da vida, ou mesmo depois da vida?) Porque literatura e vida andam juntas, e essa prorrogação da vida nos dá um Brás Cubas vivo, e não morto. Sobre a morte, não há nada a dizer. A literatura abre uma clareira no silêncio. É uma trégua na guerra.

Mas se é uma prorrogação, se é uma trégua, tem um prazo limitado para durar. Desde o início, sabemos que a história vai acabar mal. E acaba da pior maneira. Avellaneda morre de maneira abrupta, estúpida. O romance se arrasta um pouco mais, com os espasmos de um cachorro atropelado, e morre também, logo depois. Mais exatamente, a moça morre no dia 23 de setembro, 10 dias depois do personagem completar 50 anos, e o registro do diário é retomado somente em 17 de janeiro e se encerra em 28 de fevereiro, pouco mais de um mês depois. O silêncio domina quando Martín se aposenta. Quando sua vida social se encerra. O que haveria a dizer agora? Há apenas o ócio. E a elipse mais completa, a literatura do não dizer total: a página em branco.

Detalhe: estava lendo as últimas páginas deste romance quando soube da morte do autor.

POR HERON MOURA Professor de linguística da UFSC

FONTE: Diário Catarinense - Florianópolis,SC,Brazil

Um comentário:

  1. Há muito tempo sou leitora assídua do blog do Heron.
    São aulas de literatura. Um blog da melhor qualidade. Aprendo muito com ele.
    Um Mestre.

    Muito boa indicaçao
    Abraços,

    Mai

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