quinta-feira, abril 16, 2009

A língua do Créu



Quinta-feira, 16 de abril de 2009
A língua do Créu

Ao contrário desses economistas desalmados que vivem embrulhando pacotes para descarnar o nosso bolso, o velho mestre dos dicionários, Antônio Houaiss, assegurava que as palavras têm alma.
Elas podem engordar, ganhando novas sílabas ou acepções, ou emagrecer, por supressão etimológica — como a palavra episcopu, que migrou do latim para o português, transformada em bispo. E quem não gostasse que fosse reclamar ao dito cujo.
A língua portuguesa do Brasil, degradada ou não, multiplica seus neologismos com uma velocidade semelhante ao Real perdendo décimos para o Dólar em crise.
Investidos na presunção de que são os proprietários da língua, pelo considerável fato de já a falarem na sua forma quinhentista, nossos caros patrícios da Matriz condenam a degradação desse patrimônio. Estaríamos a malbarataire a Flor do Lácio, a insultá-la, a despetalá-la.
É como se queixa, de Portugal, um amigo patrício contrariado com as gírias novelescas:
— Agora deram de falar numa tal "dança do Créu! Um horror. Uma dancinha que imita as relações, só que em pé!
Aí já passamos para o incontrolável terreno dos costumes e — mais imprevisível ainda — ao reino monocórdico, obsessivo e sinistro do funk carioca.
— Pois é — concedi. Lá no Rio as coisas estão mesmo "ruças".
O amigo luso protestou de novo, sem entender a velha gíria:
— Ruço? O que é isso? Uma nacionalidade dos Urais?
Ora, se o meu amigo português comprasse o novo Dicionário Ortográfico da Língua Portuguesa, sempre atualizada pela equipe do saudoso Houaiss, ficaria sabendo que "ruço" é sinônimo de difícil, árduo, penoso, complicado, intrincado. Estar "ruço" é estar feio, sinistro. Mas aí já estamos explicando gíria com gíria, as palavras acabam como as nossas adolescentes, gestantes precoces.
Os meus queridos amigos d'além mar que me perdoem. Língua é um ser vivo e pulsante, um credo dinâmico, falado e ditado por quem tem mais bocas. Somos 180 milhões falando o brasileiro, com créu ou sem créu.
A última edição revista e atualizada do Aurelião incorpora algumas pérolas lapidadas pela verve popular, depois de admitidas numa espécie de vestibular. A palavra tem que provar a sua eternidade para merecer o registro na bíblia de mestre Aurélio Ferreira. Não basta ser uma coqueluche, como o dito Créu. Há que ser um verbo já veterano, provado na sua acepção mais cristalina, como "malufar", à guisa de "afanar", "subtrair sorrateiramente".
Já aprovadas neste vestibular, lá estão, por exemplo, dançar, mordomia e marajá.
Dançar: "Sair-se mal; não alcançar o que esperava. Fez exame vestibular e [dançou]. Ser preso, detido". Mordomia: "Bem-estar, conforto, regalia. Vantagens tidas como moradia, condução, criadagem e alimentação". Marajá: "Funcionário a quem se atribui salário exorbitante; pago a servidor pouco escrupuloso, que, muitas vezes legisla em causa própria".
Bem se vê que Mordomia e Marajá são verbetes já desatualizados pelos fatos. O Corporativo que gasta com o ilimitado cartão dourado da República já merece figurar na acepção de um e de outro.
Tudo bem, as novas palavras são sempre bem-vindas, pois não somos tão avessos às mudanças quanto os mansos tempos de um Almeida Garrett, um Camilo Castelo Branco, um Alexandre Herculano.
Esperemos, com resignação, a incorporação do Créu aos dicionários.
Créu: "Dancinha energética do funk carioca, o tronco balançado num ritmo semelhante ao do intercurso sexual.
Ou, "carcada" que um descuidista da República aplica no contribuinte, mediante o uso abusivo do cartão corporativo. O funcionário chega no contribuinte e, ó, créu!


FONTE: Blog do Sérgio da Costa Ramos
apud: Zero Hora - Porto Alegre,RS,Brazil

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