Literatura
Se um viajante
Alan Santiago
Se um viajante
Um livro sobre o ato da escrita e o prazer de ler romances. Em celebração a Se um Viajante Numa Noite de Inverno, publicado há 30 anos, o Vida & Arte Cultura de hoje discute a literatura de seu autor, o italiano Italo Calvino
Alan Santiago
especial para O POVO
28 Mar 2009 - 15h42min
Você, Leitor, é o herói de Italo Calvino. É o personagem principal, supremo na narrativa de Se um viajante numa noite de inverno. Não vá com pressa. Para entender as tramas da história é preciso calma. Por isso, relaxe, concentre-se, afaste todos os outros pensamentos e deixe que o mundo a seu redor se dissolva no indefinido. Nessa narrativa que completa 30 anos, você está subjugado pelos ditames do acaso: comprou o livro - esse mesmo em que você é o herói - e começou a lê-lo, mas, após as primeiras páginas, percebeu que a trama se interrompe e começa uma outra narrativa. Ao voltar à livraria, descobrirá que um erro da editora na encadernação colocou o início de um romance polonês dentro do livro de Calvino.
Então, o romance que você acreditava ter iniciado não era Se um viajante, mas se tratava na realidade de um outro, chamado Fora do Povoado de Malbork. Agora, seu motivo de desejo é esse novo livro, até o momento completamente desconhecido. Você já foi fisgado pelo enredo e quer saber como termina. Mas, por outro motivo, alheio à sua vontade, o romance de Tatius Bazakbal também será interrompido nas primeiras páginas. Assim vai acontecer com outros oito incipits - inícios que o farão ir em busca do complemento, do fim para as histórias que apenas consegue começar. E sua procura, tão insistente quanto as interrupções na leitura, finda por conduzi-lo ao último capítulo, à última linha.
Calvino causou furor quando pôs no papel este volume de 263 páginas com inícios de dez romances imaginários, que fazem você, Leitor, se confundir com o personagem principal dessa história mirabolante sobre leitores na procura desesperada por livros. Estratégia muito bem sucedida que o autor utilizou para discutir leitura, literatura e escrita. No final do trabalho, havia um meta-romance ou, como ele gostava de dizer, um hiper-romance. “Um livro sobre o ato de ler, o ato de escrever, a escuta, o pensar, a imagem, a escrita, a impessoalidade da escrita, a oralização do texto, a literatura, os territórios e desterritórios da literatura”, diz a pesquisadora Maria Lúcia de Resende Chaves, autora do livro Que história aguarda, lá embaixo, seu fim?... - uma leitura de Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, fruto do mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Calvino foi estruturalista? Atravessou esse tempo, sim, mas foi além, por isso seus livros são clássicos que a humanidade apenas começou a ler... e a vivenciar”.
Anos depois da publicação, numa conferência no Instituto Italiano de Cultura de Buenos Aires, Calvino se dispôs a explicar melhor sua proposta: “Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances. Mas, sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros”. E, em nota à edição brasileira de 1982, acrescenta: “Meu livro é um romance que a todo momento se cancela, se interrompe, se pulveriza: indicação das múltiplas direções da narrativa contemporânea”.
Fruto em grande parte de seus estudos junto do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), um conjunto de intelectuais que se reunia nos cafés e restaurantes parisienses para discutir literatura, propondo regras rígidas para a criação literária. O grupo fazia uma amálgama entre a subjetividade da literatura e a rigidez e certeza da matemática. Dessa época, Calvino gerou O Castelo dos Destinos Cruzados (1973), intensamente baseado no jogo, na probabilidade, no destino e no leitor. Nesse livro, “utiliza com grande ênfase duas restrições, a combinatória e o palíndromo, que funcionam como as regras básicas do jogo narrativo que desenvolve ao longo da obra. As cartas do tarô são combinadas de inúmeras maneiras com histórias que podem ser lidas a partir ‘dos quatro pontos cardeais?”, afirma a pesquisadora Maria Elisa Rodrigues Moreira, mestre em Letras e doutoranda em estudos literários pela UFMG.
Essa concepção de jogo não é propriamente atual. Mallarmé é responsável por ir fundo nessa direção desde o século XIX. Ele propôs, já no simbolismo literário, a criação de uma obra em intenso movimento, cujas páginas não tinham ordem fixa e poderiam ser permutadas.
O critico italiano Angelo Guglielmi acusou Calvino dessa mesma megalomania - que escapa como o diário do escritor falsificado Silas Flannery em Se um viajante. Ele escreve: “Por que não reconhecer que minha insatisfação revela uma ilusão desmedida, talvez um delírio megalômano? Ao escritor que deseja anular-se para dar a palavra ao que está fora dele, existem dois caminhos: ou escrever um livro que possa ser o único livro, capaz de esgotar o todo em suas páginas; ou escrever todos os livros e perseguir o todo por meio de imagens parciais”. Rebatendo as críticas, na revista Alfabeta, Calvino se defende: “Eu mesmo falo justamente de ‘totalidade‘, de ‘todos os livros possíveis?. Digamos que em meu livro o possível não é possível absoluto, mas o possível pra mim”.
Pois desse possível nasceram os dez inícios de romances que brotam no curso da narrativa. Cada um com um tom nitidamente diferente. Vai do romance da neblina ao apocalíptico. E, nesse último, quando o mundo está para acabar, Calvino nos mostra que o mundo sempre continua: os títulos dos livros que compõem o romance formam juntos o início de outro romance. “Se um viajante poderia ser pensado, assim, como uma espécie de enciclopédia sobre o literário, como um livro no qual os saberes sobre a literatura são reunidos e colocados em diálogo, num movimento que pretende não a totalidade do conhecimento, mas a produção de saber a partir do diálogo entre as mais diversas informações e reflexões sobre a literatura”, diz Maria Elisa.
Para entender a obra de Calvino num contexto mais amplo, o rumo que se deve tomar é o mesmo. Trata-se de uma produção fincada numa rede complexa onde estão imbricadas ciência, política e literatura como objetos de reflexão e temática ficcional. Ao longo deste caderno, vamos discutir um pouco mais sobre vida e obra - tão fragmentada - de um dos grandes escritores italianos do século XX. Quando fechar o jornal, vá a uma livraria, Leitor, vença algumas estantes até se deparar com uma capa esverdeada. Na primeira linha, a sua aventura está prestes a alçar voo: “Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido”.
FONTE: O POVO Online - CE,Brazil
FOTO: Monarch of the Glen.
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