sábado, março 28, 2009

Imagens e ausência


CAPA
Imagens e ausência
O mexicano Mario Bellatin e o alemão W. G. Sebald singularizam a leitura valendo-se do que as imagens insistem em não revelar
Como ler as imagens? Ou até que ponto, hoje, é possível lê-las? Esta, talvez, seja uma pergunta fundamental para aqueles que lidam com as diversas manifestações culturais da contemporaneidade – da arte nas galerias às informações que circulam nos meios de comunicação de massa.

São motivos de encantamento as fotografias, os filmes ou mesmo as pinturas que, num exagero de fidelidade, “até parecem fotos”. E uma expressão como esta, baseada no senso comum, reforça o fascínio que o registro técnico das imagens exerce; fascínio crescente, no Brasil, sobretudo a partir das últimas décadas do século 19, com a massificação dos processos fotográficos e, depois, cinematográficos: produtos do “progresso”, da “evolução” de um homem que já dispunha de mecanismos capazes de capturar o real e de subverter a passagem do tempo.

Há, com isso, um trabalho nas sensibilidades, e as artes, logo influenciadas, têm seus problemas, suas formas, seus objetos transformados. Uma maneira de se entender o apelo das pinturas modernistas, por exemplo, é contrapondo-as à mimesis academicista – esta já esgotada também pela precisão “documental” das novas tecnologias; isto é, encarando o modernismo como uma série de desdobramentos não da cópia, mas da deformação do real – em muito potencializada, paradoxalmente, pela massificação tecnológica. E, em outra frente, também a literatura sofre as consequências da reprodutibilidade das imagens, o que pode ser constatado nas crônicas de Pedro Kilkerry, na obra de João do Rio, entre outros, como expõe Flora Süssekind em Cinematógrafo de letras.

Mas, num revés do deslumbramento, ao longo do século 20 não são poucas as constatações de que a disseminação das imagens distancia-se de ser um “meio” de contato para tornar-se o esvaziamento, o próprio “fim”: na sociedade do espetáculo, conceituada por Guy Debord, as imagens ganham a dimensão da própria realidade – uma “ilusão real”, mercadorias no “monopólio da aparência”. A partir delas estruturam-se as relações de poder e as trocas no mundo contemporâneo.

De modo que, há muito, as imagens deixaram de promover, seguramente, a sensibilização do corpo, da memória; ao contrário, elas perderam-se no próprio excesso e, de próteses que proviam a estesia, tornaram-se, hoje, na maior parte das vezes, dispositivos anestésicos, reproduzidos ao infinito. “É claro que os olhos ainda veem. Bombardeados com impressões fragmentárias, veem demasiado – e nada registram”, afirma Susan Buck-Morss em Estética e anestética: o “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter Benjamin reconsiderado.

Dessa forma, retomo: como ler as imagens? Detenho-me, então, em dois nomes significativos, autores de experiências interessantes no jogo de leitura de imagens e de textos, ou de leitura de textos como imagens: o mexicano Mario Bellatin (nascido em 1960) e o alemão W. G. Sebald (1944– 2001).

De Bellatin, comento dois livros brevemente. Em Shiki Nagaoka: una nariz de ficción (2001), um escritor que teria sido caracterizado menos por sua obra do que por seu nariz descomunal tem a vida passada a limpo. E, além da biografia, acompanha o texto um apêndice com fotografias pessoais, dos escritos e dos objetos utilizados por Nagaoka. Os indícios são evidentes, mas o elemento de maior relevância, ponto que sustenta toda a narrativa, é exatamente o que não tem forma definida: o nariz. Não se pode vê-lo. Assim, mais se afirma o que mais falta; a realidade arma-se como fabulação. E os registros fotográficos e as legendas – esse apêndice astucioso – não fazem mais que aprofundar um abismo e afastar as bordas.

Jacobo el mutante (2002), por sua vez, é a reescritura alucinada de uma hipotética novela do austríaco Joseph Roth (1894–1939), La Frontera, da qual somente alguns fragmentos seriam conhecidos, segundo Bellatin. Novamente, aqui, imagens são incluídas, desta vez cindindo as frases, as palavras. Fotografias de leitura questionável, de formas ambíguas, movediças – de campos ou desertos que se fundem, num ponto indecidível, a superfícies tranquilas de lagos ou rios, por exemplo. Como se, a cada registro, Bellatin perguntasse: “Onde, a fronteira?”; “De qual fronteira falamos?”. E assim como não há razão que justifique a mutação do rabino Jacobo Pliniak (que se transforma em outro personagem, em outro tempo e outra situação), não há certezas em resposta ao autor. Tudo está em movimento e, com a dúvida, é preciso recomeçar a leitura, em busca de um sentido igualmente mutante.

Muito se lê a respeito da hibridez de gênero da prosa de W. G. Sebald, autor de Vertigem (1990), Os Emigrantes (1992), Os Anéis de Saturno (1995), Austerlitz (2001) e outros. Talvez seja lícito dizer que suas narrativas operam na tensão forjada entre fatos e artefatos. São relatos que se opõem à história baseada em documentos, em provas, contrapondo a ela as memórias dos personagens e narradores. O que é quase uma contradição, pois, para isso, Sebald se vale, exatamente, de fotografias, desenhos, reproduções de tíquetes, recibos, carimbos, mapas. Mas, nessa espécie de arquivo de trajetos erráticos, as imagens aparecem como as histórias contadas: opacas e não suficientes, isto é, plurais e instáveis. Pois o discurso verbal não cessa de deixar lacunas, e as imagens não são confiáveis para o preenchimento das frestas, para a conservação dos fatos. As imagens apontam para o que faltou ser dito, para o que não aparece: o que só se desvela no trabalho da imaginação.

Em tempos de imagens excessivas, reproduzidas tecnicamente por câmeras, celulares, outdoors, telas várias, é preciso questionar as imperfeições, as ausências que elas revelam. Porque tais ausências não habitam apenas as imagens... Arma-se a suspeita, e nessa hora as formas consensuais perdem consistência, desencontram-se de sua obviedade.

Potencializando a ficção, Mario Bellatin e W. G. Sebald dão espaço para que cada leitura evoque uma verdade singular – ou o diferimento da verdade. Uma maneira de estimular um contato íntimo e mais duradouro com o mundo ao redor – para escapar à repetição de um mesmo velho espetáculo.

* Graduado em Comunicação Social (Unaerp – SP) e em Letras (UFSC), mestrando em Teoria Literária (UFSC)

POR ARTUR DE VARGAS GIORGI

*Multimídia


FONTE: Diário Catarinense - Florianópolis,SC,Brazil


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