terça-feira, dezembro 02, 2008

O estudante de Filologia Clássica que fugiu à “arte de empobrecer alegremente”


Entrevista
26 Nov 2008, 16:18h
Justino Mendes de Almeida nasceu em Benavente e é na vila que se sente em casa

O estudante de Filologia Clássica que fugiu à “arte de empobrecer alegremente”

Nasceu em Benavente. Na casa de família que resistiu ao terramoto. Justino Mendes de Almeida, 84 anos, reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, foi estudante trabalhador em Coimbra. Aprendeu a redigir ofícios e a dactilografar no grémio da cidade. As notas altas valeram-lhe uma bolsa de estudo. Fugia assim da vida da agricultura - a “arte de empobrecer alegremente” - para se dedicar ao saber cumprindo uma promessa de sacerdócio.

Entrevista


Nasceu nesta casa de Benavente, uma das que resistiram ao terramoto de 1909.

Há pouco menti-lhe quando disse que nasci aqui. Mas foi uma mentira pia. Nesta casa viviam os meus avós. Nasci na casa da esquina, ali em frente.
Teve uma infância feliz?
Não tenho o direito de dizer que não tive. Estudei onde queria. Fui para Coimbra. Por isso me recordo com muita saudade do meu pai e da minha mãe. Tive uma infância muito feliz, sim. Aquilo que a maioria não pode dizer.

O que fazia o seu pai?

O meu pai era lavrador. Rendeiro de terras da Casa Cadaval e Companhia das Lezírias. Teve a feliz ideia de não querer que os filhos seguissem a agricultura. Já nessa altura via à distância que é era a arte de empobrecer alegremente. Naquele tempo as cheias terríveis destruíam as culturas. Fez um grande sacrifício em mandar-nos para Coimbra onde chegámos a estar três filhos. O meu tio, Manuel Lopes de Almeida, que era catedrático na Faculdade de Letras de Coimbra, ajudou-nos... Ali está naquele quadro na Universidade. De óculos. Usava-os desde o terramoto porque apanhou um pouco de cal num olho.
Era próximo do campo?
Muito… Gostava e gosto do campo de Benavente, das margens do Sorraia. Sinto-me aqui melhor do que em qualquer outro lado. Por alguma razão fiz o meu serviço militar na cavalaria, em Torres Novas, antes de passar para Santarém. Depois fui completar o serviço militar em Elvas.

Cumpriu a instrução primária em Benavente.

Toda. Com a mesma professora. A causa fundamental do insucesso escolar em todos os cursos, sejam de Comunicação, Direito ou Matemática, é a perda do gosto pela leitura que nos era infundido pelos professores do ensino primário. Tínhamos tanto respeito aos professores, que nunca nos esquecíamos dos seus nomes.

Frequentou o Liceu Sá da Bandeira, em Santarém. Como se deslocava até lá?

Havia carreiras. Um autocarro manhosíssimo. Às vezes passava lá algum tempo. Os meus avós tinham amigos em Santarém que nos protegiam. Fui depois para o liceu D. João III em Coimbra nos últimos dois anos do liceu. Fiz o exame de aptidão para a faculdade a Clássicas e a Românicas. Fiquei aprovado nas duas. Optei pelas clássicas.

Como foi a sua vida em Coimbra?

Comecei a estudar na Universidade como trabalhador estudante. Enquanto estudava estava empregado num grémio onde aprendi a redigir ofícios e a escrever à máquina, o que me foi muito útil, mas logo no primeiro ano tive umas boas classificações. Foi-me concedida uma bolsa de estudo com que estudei o resto do curso.

Para obter bons resultados teria que ser muito disciplinado…

Muito. Passei a maior parte do tempo nas bibliotecas. Quando estava na Faculdade de Letras saia das aulas, entrava no pátio da universidade, depois na biblioteca e passava lá horas. Sou de uma fase muito antiga. Eu próprio me admiro como vivi tantos anos. Às vezes chegam notícias longínquas: ‘Olhe, encontrei fulano, falei-lhe de si e sabe o que me disse: esse tipo ainda é vivo?’ (risos).
Lida com essas situações com humor.
Sim e com a obrigação de trabalhar enquanto puder e de transmitir aos meus alunos aquilo que aprendi ou vou aprendendo. Porque todos os dias estudo.

Como era disciplinado, para mais tinha que trabalhar, não havia tempo para namoradas…
É evidente que mentiria se dissesse que não me interessava… Até me interessei, mas fiz de princípio como que uma promessa de sacerdócio de dedicar toda a minha vida ao ensino, ao estudo e à investigação. O que não quer dizer que não tivesse tido [namoradas]. Até aqui em Benavente, mas o melhor é não falar nisso… Foi uma opção.

De que não se arrepende.

Não vou ao ponto de dizer, como disse o professor Leite de Vasconcelos, que se tivesse casado teria escrito muito menos. Não tenho um feitio fácil e seria muito difícil encontrar alguém que se adaptasse à minha maneira de ser.
Dedica todo o tempo ao saber.
Ocupo todo o meu tempo com o estudo. Sigo o conselho do professor Hernâni Cidade: “Quando não tiver mais um livro para ler leia ‘Os Lusíadas’”.
“Os bons profissionais têm sempre lugar”

O Senhor Reitor nasceu em 1924.

Sim. Impressiona muita gente. A começar por mim. Não pelo facto de ter 84 anos, mas por ser ainda professor universitário e reitor de uma universidade há 23 anos.

Mas sente-se com energia.

Se não sentisse energia para ir fazendo estes trabalhos – praticamente todos os dias faço um trabalho – não estava lá. Mas já tentei sair algumas vezes e não consegui. Por outro lado, tenho receio de deixar a universidade. Fui um dos fundadores em 1985. Sou eu que a dirijo há 23 anos. Conseguimos um conceito de universidade excelente. Isso leva-me a uma certa hesitação sobre se deva deixar a universidade em mais um final de mandato que termina em Julho do próximo ano.

Como surgiu a universidade?
Era um período pouco pacífico no domínio dos estudantes. As universidades públicas recusavam-se a admitir um certo número de estudantes porque não tinham professores. Estavam saneados ou exilados. Houve então quem se lembrasse de que havia no estrangeiro uma modalidade que não tinha sido experimentada ainda em Portugal. A modalidade de universidade livre com programas reconhecidos pelo Governo. No primeiro ano tivemos uma avalanche de gente.
Foi bem aceite?
Logo de início se manteve um conflito entre o ensino público e o ensino privado, que ainda persiste hoje. Criámos não apenas os cursos das universidades públicas, como outros, aproveitando os professores catedráticos desocupados. Os melhores: Galvão Teles, Palma Carlos, Adriano Moreira, entre outros. Entregaram-me a direcção dos Estudos Portugueses onde estava como director, Veríssimo Serrão. Tinha sido meu companheiro na Faculdade de Letras de Coimbra.
E porquê essa visão negativa?
Porque os alunos preferiam a nossa universidade à universidade pública. Porque viam lá os bons professores que tinham sido rejeitados por razões de natureza política. Depois surgiram alguns conflitos e o ministério extinguiu a Universidade Livre. Surgiram duas novas universidades: a Universidade Autónoma, em Lisboa, e a Universidade Portucalense, no Porto. Indiquei como patrono – Luís de Camões.
Tem estudado muito o homem e o poeta. O que o fascinou?
A obra naturalmente. Mas ele mesmo foi um grande português. É não só o maior poeta de língua portuguesa como um dos seus maiores escritores de Língua Portuguesa. É normalmente conhecido pel’ “Os Lusíadas”. Mas tenho dúvidas sobre qual é preferível. Camões épico ou Camões lírico. Tenho dias em que prefiro o lirismo. Outros em que prefiro a poesia épica. Quando leio, por exemplo, o episódio de Inês de Castro fico vencido para o lado d’ “Os Lusíadas”. Quando leio sonetos deixo-me então vencer para o lado da lírica. A língua portuguesa que temos foi a língua fixada por Camões com a publicação d’ “Os Lusíadas”.
Mas a língua de Camões é muitas vezes desrespeitada por jovens licenciados…
É uma pena que isso aconteça. A Língua Portuguesa sofreu um golpe profundo com a criação e desenvolvimento da tecnologia. O audiovisual fez perder em grande parte o gosto pela leitura. E quando se perde o gosto pela leitura não se sabe escrever nem falar. Existe em Portugal e no Brasil um acordo ortográfico que foi aprovado em 1945 que é aquele que utilizamos na nossa escrita e que foi preparado pelos melhores linguistas. Entendo que agora não há razão suficiente para um novo acordo. Há razão suficiente para a simplificação ortográfica. Determinados sinais e letras que podem ser eliminados. Este acordo pode ser politicamente importante, mas cientificamente é um erro.
Há quem defenda que há demasiada gente licenciada.
Não acredite nunca nisso. Por vezes é difícil encontrar um lugar seguro. Cada vez mais. Mas há uma coisa que a experiência me ensina: os bons profissionais têm sempre lugar.
E o que tem a dizer sobre as alterações estruturais em instituições de ensino. Como o falado “casamento” entre politécnicos de Tomar e Santarém.
É um problema da responsabilidade dos directores das escolas. Não vejo inconveniente. Pode ser o fortalecimento, mas é preciso ter cada vez mais cuidado na selecção do corpo docente. Esta “tourada” da agitação docente contra a ministra da Educação – falando em linguagem ribatejana – está mal de um lado e de outro. Não é daquela maneira que se chega a uma conclusão. Ser ministro não custa. Custa é governar bem. Já diziam os Romanos que ninguém pode tomar uma decisão sem ouvir as duas partes. Há centenas de professores que não têm habilitações para ensinar. Têm sido admitidos como se fossem licenciados ou diplomados ao longo destes anos. A avaliação pode revelar centenas de situações ilegais. É humano, desculpável, mas podia evitar-se.

É apologista da avaliação?

Sou apologista de todas as avaliações, desde que sejam feitas por pessoas que saibam avaliar. E com condições académicas superiores àquelas dos que vão ser avaliados. Apesar de tudo, acho que as coisas têm caminhado para melhor.
Um estudioso no Senhor da Boa Morte
Justino Mendes de Almeida, um conhecedor profundo de Latim e Grego, dedicou-se muitos anos ao estudo da epigrafia [estudo das inscrições em materiais duros] e debruçou-se sobre um conjunto de inscrições de Vila Franca de Xira, Santarém e Alenquer. “Encontrei moedas no Senhor da Boa Morte, em Vila Franca de Xira, onde fazem romaria. E nos túmulos que lá estão cavados na rocha encontrámos inscrições. Havia o hábito de lançar na sepultura uma moeda da época para localizar depois o tempo em que se procedeu à sepultura”, recorda.
Um dos meus maiores desgostos foi nunca ter encontrado em Benavente uma inscrição romana ou lusitano-romana, como gosta de dizer. “Porque Benavente é nome de origem italiana”, diz o professor catedrático que defende que a vila foi baptizada com uma derivação de uma região italiana “Beneventum”, fundação de colonos italianos.

O magnífico reitor

Abre-se uma porta de uma casa com história em Benavente. A fundação data de 1890. Segundo um documento encontrado anos depois no interior de uma garrafa. É casa de família do magnífico reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, onde Justino Mendes de Almeida, 84 anos, se recolhe sempre que pode para fugir ao bulício de Lisboa onde tem segunda casa. A cada canto existe uma pequena biblioteca. O lugar maior destinado aos livros vai surgir numa antiga adega que o professor mandou restaurar. De vez em quando chama bibliotecárias ao domicílio para organizar o espólio. Sobretudo os livros que reuniu enquanto Director-Geral do Ensino do Ultramar [1961-1968]. Sítios onde durante doze anos deixou “metade da alma”, consequência de uma vida “pelo mundo em pedaços repartida”.
Foi nomeado inspector das bibliotecas e arquivos, dois meses antes de ser chamado a desempenhar o cargo de chefe do gabinete do Ministro da Educação Nacional. Foi sub-secretário de Estado da Administração Escolar de Salazar e no Governo de Marcelo Caetano ocupou o cargo de presidente da Junta de Investigações do Ultramar.
Tem Camões, de que é cultor, por toda a parte. Abre o livro de rimas e descobre éclogas, redondilhas, odes e sonetos. “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida descontente (…)”. Quem lê este soneto não pode deixar de criar uma certa paixão, um certo partidarismo pela obra lírica; constância do amor, explica o professor enquanto folheia as obras de capa dura. “Sete anos de pastor Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela (…)”.
É difícil preferir um episódio de “Os Lusíadas” a um soneto. “Dificilmente considero a epopeia superior à lírica ou às rimas”, garante. “Mas depois surge-me um outro problema mais delicado ainda. Qual é superior: Camões ou Gil Vicente? E quando leio um auto de Gil Vicente fico rendido”. Cita também Miguel Torga. E contemporâneos. “Saramago é um prémio Nobel. E tem de ser muito bom. Mas eu entendo que há um princípio que nem sempre é seguido e que tira valor a certas obras. ‘Pontuar é interpretar’”.
Aconselha os alunos a escrever todos os dias uma página qualquer. Os livros que escreveu nunca foram postos à venda. Só os ofereço a alunos ou a pessoas de Benavente. Nunca casou. Por opção. Em Benavente, a proprietária do Café d’Ana, mesmo em frente da residência, cuida de lhe manter a casa arrumada e a roupa preparada. Toma as refeições nos restaurantes da vila. De forma rotativa para ajudar a todos. Ao pequeno-almoço conforta-se com cereais. Mas a cozinha da casa, que dá para um pátio de laranjeiras, está equipada e funcional. A tauromaquia ocupa um lugar na casa e no coração, mas já seguiu com mais atenção o mundo taurino. Vai à missa sempre que pode e continua a estudar e a produzir um trabalho por dia com o rigor da disciplina que infligiu a uma espécie de sacerdócio que escolheu para a sua vida.

FONTE (photo include): O Mirante - Santarém,Santarem,Portugal

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