terça-feira, novembro 25, 2008

O continente invisível e o milagre da multiplicação


A política nos aproximou no que dividimos de mais doloroso: as ditaduras
FERNANDO FIUZA

O continente invisível e o milagre da multiplicação

O Brasil não conhece o Brasil. E se assim é, o que se poderia esperar que o brasileiro soubesse de seus vizinhos latinos?! Esse incômodo parece emergir um pouco mais a cada dia, de forma afirmativa, seja movido pela necessidade, seja pela curiosidade. E, se não será contornado num passe de mágica, ao menos problematizado ele vem sendo. Crescentemente. A ponto de emergir como foco de atenção especial na rede pública de televisão, via TV Cultura e TV Brasil, e dar o tom a diferentes eventos culturais em São Paulo, Brasília, Salvador e Belo Horizonte [informações gerais e links no meu blog: futurodamusica.zip.net]. Mas antes de chegar a eles, cabe investir numa breve derivação de fundo histórico que remonte os caquinhos deste quebra-cabeças e nos ajude a enxergar o que pode haver de novo no momento. Além do futebol e da política, a música, a literatura e o cinema afirmam-se como principais frentes de conexão entre brasileiros e seus pares latinos - para além dos acordos comerciais bilaterais e de esforços de ação coordenada como o Mercosul.

No nosso caso, este diálogo raramente deixa de estar circunscrito aos países mais próximos, do Cone Sul. O futebol, que durante décadas apenas recrudesceu a disputa entre os povos, sofreu o impacto da exportação de brasileiros [à razão de centenas por ano] que desmilingüe os campeonatos nacionais. E teve como efeito colateral algum trânsito de jogadores de "lás" pra cá - argentinos, sobretudo, mas também uruguaios, colombianos, paraguaios. A política nos aproximou no que dividimos de mais doloroso: as ditaduras. E a acolhida dos "hermanos" perseguidos, de lado a lado, não foi suficiente para calar os crimes militares inter-fronteiriços, praticados em "pool" em momentos como os da Operação Condor - uma ação conjunta entre serviços secretos, cujo efeito no Brasil [ainda pouco estudado] envolveria diretamente as mortes de Jango e JK, por exemplo. Literatura e cinema contaminam-se mutuamente no que a arte pode oferecer de melhor: a capacidade de compartilhar experiências e permitir a reflexão sobre o que nos une como seres humanos. Mas desconheço algo que permita definir com clareza um manancial de influências específico, capaz de ter gerado filhotes brasileiros com sotaque de qualquer outro país latino.

É especialmente notável, aqui, o vigor do cinema latino recente [argentino, sobretudo] e a sua crescente entrada no Brasil - não apenas pelas mãos dos festivais, mas também no circuito de salas de cinema. Mas não a ponto de se ver com clareza o que um deu ao outro. O território da música, contudo, talvez seja o que tenha gerado o trânsito mais contínuo [coalhado de cruzamentos e desvios] ao longo das décadas. Também aí a Argentina é mais presente. E basta o tango para acentuar isso - de Gardel a atualizações como a do Piazzolla ou, nestes tempos, à revisão eletrônica dos franco-argentinos do Gothan Project. O contra-fluxo, mesmo episódico, não deixa de ser constante. Já nos anos 60 Buenos Aires acolhia muito bem o músico brasileiro egresso da Jovem Guarda. O que pode ser ilustrado por Getúlio Côrtes [autor de "Negro Gato" e uma dúzia mais de clássicos gravados por Roberto Carlos em sua fase áurea], que lá viveu.

Ou da Bossa Nova, que geraria discos marcantes como "Vinicius de Moraes - Grabado en Buenos Aires", com Vinicius, Toquinho e Maria Creuza acompanhados por instrumentistas argentinos. A contaminação mais forte, contudo, sempre se deu aos espasmos. Artistas como a argentina Mercedes Sosa ou a chilena Violeta Parra deixaram marcas indeléveis sobre a música brasileira - o que é bastante visível em certa fase do Clube da Esquina [e, mais explicitamente, nas dobradinhas com Milton Nascimento como a de "Volver a los 17", em que Milton e Mercedes fazem dueto na música de autoria de Violeta] ou na obra de artistas como Elis Regina [que regravou "Gracias a La Vida", também de Violeta Parra]. Nos anos 90, o rock brasileiro dos 80 [pós-abertura política] tratou de atualizar a conversa, em parcerias como as dos Paralamas do Sucesso com os argentinos Fito Paez e Charly García.

Recentemente, o carioca Paulinho Moska ativou uma intensa via de mão dupla com o uruguaio Jorge Drexler - que ganhou notoriedade internacional em 2005 com o Oscar pela canção "Al Otro Lado del Río". O que, raios, estaria por trás deste "milagre da multiplicação" do interesse pelos "hermanos" que se vive hoje no Brasil. Coincidência,apenas? Não creio. E você? Será que um dia saberemos o que nos aguarda na outra margem do rio?

Israel do Vale, 41, é gerente-executivo de conteúdo da TV Brasil, e escreve neste espaço aos sábados.

Publicado em: 22/11/2008

FONTE (image include): O Tempo - Belo Horizonte,MG,Brazil

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