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30/10/2008 22:55:00
O beijo
Por Anibal Beça
- Dona Zélia, a senhora está dispensada por hoje do ensaio.
O maestro foi seco e áspero. Não sem razão. Já tinha voltado ao início duas vezes. Aquela partitura exigia muito das cordas. Principalmente do violoncelo. Zélia estava estranha, tão diferente da primeira vez, quando fez o teste para a orquestra. Dominava o violoncelo como ninguém na cidade. Tratava o instrumento com carinho todo especial. Havia até quem apontasse um relacionamento fora dos ditames. Anormal mesmo.
Viu-se no meio da Rua 22 antes que o zelador fechasse as luzes da ribalta. As partituras voavam, o andar trôpego entre os carros, partituras coladas nos pára-brisas, buzinas, trompas rachando a tarde.
Mas o que o maestro Dorner entendia ou sabia de beijo? Será que ele não notava aquela boca escancarada como uma cadela à espera de uma língua? De um toque, breve e úmido, de uma língua viva, pentecostal?
O céu estava ali, solitário, virgem, sem nuvens, pronto a ser invadido por algum trovão perdido. Faísca que viesse rasgar aquele céu vermelho da boca virgem de romã.
Um tropeço mais forte trouxe Zélia para junto do cello único companheiro nos últimos 33 anos. Não tinha ninguém no mundo, Era como um cão abandonado de rua, uma cadela desprezada: "Las mujeres desde entonces conoci todas en una, mujer y perra parida no se me acerca ninguna". "A única mulher que andou na linha, o trem matou". Foi na fronteira do Brasil com o Paraguai. Não a mulher que o trem matou, mas a sua lua-de-mel: os caminhões e os dísticos chauvinistas.
Os caminhoneiros fortes reluzindo ao sol, as tatuagens de sereias, verdadeiros marujos do asfalto.
Os olhares despiam Zélia. Aquela sensação já havia sentido por duas vezes. A primeira quando fez a 1ª comunhão. O beijo na mão do padre, o beijo no anel do bispo; a hóstia colada ao céu da boca, e a calcinha colada ao mel do sexo.
20 anos passeando pelos parques. Coruja atrás de um casal de namorados, de preferência àqueles mais ousados nos beijos. Voyeuse. Sim. Zélia era uma voyeuse.
O falecido marido era homem muito estranho. Gostava de fazer sexo vestido e nunca a beijara. Thamaturgo Valle, seu nome. Com th e dois ll, mas sem beijos. Sempre com aquela mala preta e de luvas assepticamente alvas. Carregando para onde fosse, os famigerados talheres, o copo e o guardanapo. Comia sempre no mesmo restaurante. A fiscalização de sua refeição, era condição paga com gorda gorjeta ao cozinheiro. Pratos brancos, alva toalha de linho. Ritual que se repetia quando não comia em sua casa.
Falava-se na cidade, que a esquisitice havia sido herdada de seu pai. Dentista e inventor de aparelhos de reabilitação oral. As tarraxas eram testadas na cobaia mais próxima: o filho.
Dr. Espiridião Valle, este, o nome do pai. Sua meta era acabar com todos os dentuços do mundo. Thaumaturgo, por sua vez, foi eliminando a boca de seu franzino esqueleto. A boca, órgão que nos últimos dias de vida não lhe foi de serventia. Lepra maldita de vida. "O beijo é a véspera do escarro..."
Zélia colecionava os beijos mais famosos de gables e valentinos. Figurinhas que acompanhavam o perfumoso sabonete das estrelas e nunca havia sido beijada.
A televisão na vitrine mostrava uma boca enorme anunciando a refrescante sensação de bem-estar. Mania dessas lojas de expor televisores ligados de todas as polegadas. A Martha Rocha, que tem uma boca linda, não foi Miss Universo por causa de duas polegadas a mais nos quadris. Zélia também foi candidata a "Boneca Viva" no Colégio da Divina Providência. Não ganhou. A divina providência só ajudava a moças desembaraçadas. Toda cidade sabia de sua marfiléia dentadura, da sua boca apetitosa de romã. E ela continuava uma cadela de boca virgem.
Quando se deu conta, estava deitada na praia.Os pensamentos corriam acompanhando os finos grãos de areia. Sinuosos desenhos trazidos pelo vento e areia recobriam seu corpo. O vento zunia e a areia castigava. Ora açoite, ora cilício. Estava sozinha na praia. Um ou outro banhista à distância. Sozinha, continuava desprezada, uma cadela parida.
As ondas beijavam seus pés brancos. Sentiu o amargo do sal. Salamargo purgando sua alma. Naquele bailado, Tchaikovsky: o cisne mergulhando no imenso lago. As ondas rugiam furiosas, e ela não se sentia mais. O grande lago verde a possuía com fúria, engolindo-a.
Ainda chegou com vida à praia. A visão turva mal divisava a camiseta do musculoso salva-vidas, mas sentiu o calor daquela boca soprando na sua.
Por Anibal Beça
- Dona Zélia, a senhora está dispensada por hoje do ensaio.
O maestro foi seco e áspero. Não sem razão. Já tinha voltado ao início duas vezes. Aquela partitura exigia muito das cordas. Principalmente do violoncelo. Zélia estava estranha, tão diferente da primeira vez, quando fez o teste para a orquestra. Dominava o violoncelo como ninguém na cidade. Tratava o instrumento com carinho todo especial. Havia até quem apontasse um relacionamento fora dos ditames. Anormal mesmo.
Viu-se no meio da Rua 22 antes que o zelador fechasse as luzes da ribalta. As partituras voavam, o andar trôpego entre os carros, partituras coladas nos pára-brisas, buzinas, trompas rachando a tarde.
Mas o que o maestro Dorner entendia ou sabia de beijo? Será que ele não notava aquela boca escancarada como uma cadela à espera de uma língua? De um toque, breve e úmido, de uma língua viva, pentecostal?
O céu estava ali, solitário, virgem, sem nuvens, pronto a ser invadido por algum trovão perdido. Faísca que viesse rasgar aquele céu vermelho da boca virgem de romã.
Um tropeço mais forte trouxe Zélia para junto do cello único companheiro nos últimos 33 anos. Não tinha ninguém no mundo, Era como um cão abandonado de rua, uma cadela desprezada: "Las mujeres desde entonces conoci todas en una, mujer y perra parida no se me acerca ninguna". "A única mulher que andou na linha, o trem matou". Foi na fronteira do Brasil com o Paraguai. Não a mulher que o trem matou, mas a sua lua-de-mel: os caminhões e os dísticos chauvinistas.
Os caminhoneiros fortes reluzindo ao sol, as tatuagens de sereias, verdadeiros marujos do asfalto.
Os olhares despiam Zélia. Aquela sensação já havia sentido por duas vezes. A primeira quando fez a 1ª comunhão. O beijo na mão do padre, o beijo no anel do bispo; a hóstia colada ao céu da boca, e a calcinha colada ao mel do sexo.
20 anos passeando pelos parques. Coruja atrás de um casal de namorados, de preferência àqueles mais ousados nos beijos. Voyeuse. Sim. Zélia era uma voyeuse.
O falecido marido era homem muito estranho. Gostava de fazer sexo vestido e nunca a beijara. Thamaturgo Valle, seu nome. Com th e dois ll, mas sem beijos. Sempre com aquela mala preta e de luvas assepticamente alvas. Carregando para onde fosse, os famigerados talheres, o copo e o guardanapo. Comia sempre no mesmo restaurante. A fiscalização de sua refeição, era condição paga com gorda gorjeta ao cozinheiro. Pratos brancos, alva toalha de linho. Ritual que se repetia quando não comia em sua casa.
Falava-se na cidade, que a esquisitice havia sido herdada de seu pai. Dentista e inventor de aparelhos de reabilitação oral. As tarraxas eram testadas na cobaia mais próxima: o filho.
Dr. Espiridião Valle, este, o nome do pai. Sua meta era acabar com todos os dentuços do mundo. Thaumaturgo, por sua vez, foi eliminando a boca de seu franzino esqueleto. A boca, órgão que nos últimos dias de vida não lhe foi de serventia. Lepra maldita de vida. "O beijo é a véspera do escarro..."
Zélia colecionava os beijos mais famosos de gables e valentinos. Figurinhas que acompanhavam o perfumoso sabonete das estrelas e nunca havia sido beijada.
A televisão na vitrine mostrava uma boca enorme anunciando a refrescante sensação de bem-estar. Mania dessas lojas de expor televisores ligados de todas as polegadas. A Martha Rocha, que tem uma boca linda, não foi Miss Universo por causa de duas polegadas a mais nos quadris. Zélia também foi candidata a "Boneca Viva" no Colégio da Divina Providência. Não ganhou. A divina providência só ajudava a moças desembaraçadas. Toda cidade sabia de sua marfiléia dentadura, da sua boca apetitosa de romã. E ela continuava uma cadela de boca virgem.
Quando se deu conta, estava deitada na praia.Os pensamentos corriam acompanhando os finos grãos de areia. Sinuosos desenhos trazidos pelo vento e areia recobriam seu corpo. O vento zunia e a areia castigava. Ora açoite, ora cilício. Estava sozinha na praia. Um ou outro banhista à distância. Sozinha, continuava desprezada, uma cadela parida.
As ondas beijavam seus pés brancos. Sentiu o amargo do sal. Salamargo purgando sua alma. Naquele bailado, Tchaikovsky: o cisne mergulhando no imenso lago. As ondas rugiam furiosas, e ela não se sentia mais. O grande lago verde a possuía com fúria, engolindo-a.
Ainda chegou com vida à praia. A visão turva mal divisava a camiseta do musculoso salva-vidas, mas sentiu o calor daquela boca soprando na sua.
FONTE: Portal CRONÓPIOS
http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=3614
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