Geografia da Barbárie
Luís Ferreira
Luís Ferreira
Jornal do Barreiro 25-07-2008
Editorial
A sucessão vertiginosa de imagens e palavras não nos permite perspectivar, na sua real dimensão, a complexidade do momento histórico que atravessamos, repleto de contrastes e saturado de contradições. A crise económica marca o ritmo do correr dos dias. O desemprego, o subprime e o petróleo tornaram-se elementos nucleares do quotidiano, relegando para segundo plano todas as questões e problemas que não se relacionem directamente com as dificuldades financeiras.
Apesar de serem compreensíveis, estas preocupações não devem ocultar a existência de outras realidades que gradualmente têm vindo a ser menorizadas. Com o passar dos anos, assistimos ao regresso da categoria do inumano, caracterizada pela abolição dos mecanismos naturais que controlam a violência, e pela emergência de novos fenómenos totalitários que assolam várias zonas do globo.
Em diversos locais, a relação com o outro voltou a assumir um carácter instrumental, com as ideologias assassinas a utilizarem a aniquilação física como um meio justificável para que se atinja um fim redentor. Como uma mancha de óleo que alastra lentamente, o terrorismo, o fanatismo e o racismo retomaram um lugar central no pensamento contemporâneo, constatável num breve olhar sobre as mais diferentes latitudes geográficas.
Na Palestina, a imagem seca e brutal de um soldado israelita que dispara uma bala de borracha sobre o corpo de um homem vendado e acorrentado retrata uma sociedade em erosão, na qual a possibilidade de diálogo e a conciliação caminham para um ponto de não retorno. Poucas horas depois deste incidente, um árabe investiu sobre a população indefesa com um tractor, semeando o pânico e o terror nas ruas de Telavive, num balanço trágico de 16 vítimas.
Em Belgrado, milhares de pessoas invadiram as ruas da cidade, prestando homenagem ao criminoso Radovan Karadzic, responsável pelo maior genocídio perpetrado na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial. O líder dos sérvios durante a guerra civil na Bósnia é acusado de ter ordenado a execução de 7500 muçulmanos, e autorizado o bombardeamento de Sarajevo em Junho de 1995, o que o transforma agora num herói nacional, celebrado como uma estrela de cinema ou um futebolista famoso.
O presidente do Sudão, Omar al-Bashir, depois de se ter passeado tranquilamente por Lisboa, pôde voltar ao seu país natal e dar continuidade aos já habituais massacres na região do Darfur. As acusações proferidas pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) foram recebidas por este ditador africano com uma calma olímpica, negando qualquer tipo de jurisdição do TPI relativamente às carnificinas que gosta de consumar sobre cidadãos inocentes.
Mesmo os países ocidentais não têm escapado a este recuo no domínio dos direitos humanos. A pretexto de questões relacionadas com a segurança, os Estados Unidos têm vindo a diminuir as mais elementares garantias constitucionais, transformando a prisão de Guantanamo num marco da injustiça e do autoritarismo. O jovem canadiano Omar Khadr apareceu esta semana nas televisões a suplicar por ajuda aos agentes que o vinham submeter a um novo interrogatório, numa gravação que nos permite entrever o inferno em que muitas destas pessoas se encontram mergulhadas há mais de 6 anos.
Recentemente, a União Europeia aprovou a denominada Directiva de Retorno, que configura um recuo considerável nas políticas de imigração. A coberto de uma alegada necessidade de uniformizar as diferentes legislações nacionais, viabilizou-se a detenção administrativa dos ilegais, durante 18 meses, sem que lhes tenham sido garantidos os recursos jurídicos adequados à sua situação. O repatriamento de crianças e menores de idade, mesmo que não se encontrem acompanhados pelos respectivos pais, revela mais um dos aspectos hediondos desta pretensa cruzada contra as redes de imigração clandestina.
Nos últimos meses, em Itália, o Governo de Berlusconi decretou a obrigatoriedade de todos os jovens ciganos serem identificados através das impressões digitais, aparentemente com o propósito benigno de evitar a sua exploração como mendigos pelos familiares mais próximos. No sábado passado, duas adolescentes ciganas morreram afogadas perante o olhar impassível dos restantes banhistas que, mesmo após ter sido decretado o seu óbito, continuaram a gozar tranquilamente mais um dia de praia e de sol
Albert Camus, numa das suas obras mais célebres, A Peste, descreve-nos a história de uma cidade situada na Argélia, em que a vida tranquila e monótona dos seus habitantes é abruptamente interrompida por uma série de acontecimentos inexplicáveis. As primeiras mortes causadas pela epidemia são encaradas com absoluta indiferença, procurando-se enquadrá-las na ordem natural dos acontecimentos. Só quando a calamidade começou a atingir uma maior escala, ceifando as vidas de alguns protagonistas do romance é que nos conseguimos aperceber da verdadeira dimensão da catástrofe.
Esta poderosa metáfora sobre os totalitarismos mantém-se perturbadoramente actual. Todas as vitórias humanas contra a barbárie e o absurdo acabam por ser precárias e intermitentes, mesmo que tenhamos que travar estes combates como se fossem definitivos. O teatro do mundo ensina-nos diariamente que “acabará talvez por vir o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará os seus ratos e os mandará morrer numa cidade feliz”.
Editorial
A sucessão vertiginosa de imagens e palavras não nos permite perspectivar, na sua real dimensão, a complexidade do momento histórico que atravessamos, repleto de contrastes e saturado de contradições. A crise económica marca o ritmo do correr dos dias. O desemprego, o subprime e o petróleo tornaram-se elementos nucleares do quotidiano, relegando para segundo plano todas as questões e problemas que não se relacionem directamente com as dificuldades financeiras.
Apesar de serem compreensíveis, estas preocupações não devem ocultar a existência de outras realidades que gradualmente têm vindo a ser menorizadas. Com o passar dos anos, assistimos ao regresso da categoria do inumano, caracterizada pela abolição dos mecanismos naturais que controlam a violência, e pela emergência de novos fenómenos totalitários que assolam várias zonas do globo.
Em diversos locais, a relação com o outro voltou a assumir um carácter instrumental, com as ideologias assassinas a utilizarem a aniquilação física como um meio justificável para que se atinja um fim redentor. Como uma mancha de óleo que alastra lentamente, o terrorismo, o fanatismo e o racismo retomaram um lugar central no pensamento contemporâneo, constatável num breve olhar sobre as mais diferentes latitudes geográficas.
Na Palestina, a imagem seca e brutal de um soldado israelita que dispara uma bala de borracha sobre o corpo de um homem vendado e acorrentado retrata uma sociedade em erosão, na qual a possibilidade de diálogo e a conciliação caminham para um ponto de não retorno. Poucas horas depois deste incidente, um árabe investiu sobre a população indefesa com um tractor, semeando o pânico e o terror nas ruas de Telavive, num balanço trágico de 16 vítimas.
Em Belgrado, milhares de pessoas invadiram as ruas da cidade, prestando homenagem ao criminoso Radovan Karadzic, responsável pelo maior genocídio perpetrado na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial. O líder dos sérvios durante a guerra civil na Bósnia é acusado de ter ordenado a execução de 7500 muçulmanos, e autorizado o bombardeamento de Sarajevo em Junho de 1995, o que o transforma agora num herói nacional, celebrado como uma estrela de cinema ou um futebolista famoso.
O presidente do Sudão, Omar al-Bashir, depois de se ter passeado tranquilamente por Lisboa, pôde voltar ao seu país natal e dar continuidade aos já habituais massacres na região do Darfur. As acusações proferidas pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) foram recebidas por este ditador africano com uma calma olímpica, negando qualquer tipo de jurisdição do TPI relativamente às carnificinas que gosta de consumar sobre cidadãos inocentes.
Mesmo os países ocidentais não têm escapado a este recuo no domínio dos direitos humanos. A pretexto de questões relacionadas com a segurança, os Estados Unidos têm vindo a diminuir as mais elementares garantias constitucionais, transformando a prisão de Guantanamo num marco da injustiça e do autoritarismo. O jovem canadiano Omar Khadr apareceu esta semana nas televisões a suplicar por ajuda aos agentes que o vinham submeter a um novo interrogatório, numa gravação que nos permite entrever o inferno em que muitas destas pessoas se encontram mergulhadas há mais de 6 anos.
Recentemente, a União Europeia aprovou a denominada Directiva de Retorno, que configura um recuo considerável nas políticas de imigração. A coberto de uma alegada necessidade de uniformizar as diferentes legislações nacionais, viabilizou-se a detenção administrativa dos ilegais, durante 18 meses, sem que lhes tenham sido garantidos os recursos jurídicos adequados à sua situação. O repatriamento de crianças e menores de idade, mesmo que não se encontrem acompanhados pelos respectivos pais, revela mais um dos aspectos hediondos desta pretensa cruzada contra as redes de imigração clandestina.
Nos últimos meses, em Itália, o Governo de Berlusconi decretou a obrigatoriedade de todos os jovens ciganos serem identificados através das impressões digitais, aparentemente com o propósito benigno de evitar a sua exploração como mendigos pelos familiares mais próximos. No sábado passado, duas adolescentes ciganas morreram afogadas perante o olhar impassível dos restantes banhistas que, mesmo após ter sido decretado o seu óbito, continuaram a gozar tranquilamente mais um dia de praia e de sol
Albert Camus, numa das suas obras mais célebres, A Peste, descreve-nos a história de uma cidade situada na Argélia, em que a vida tranquila e monótona dos seus habitantes é abruptamente interrompida por uma série de acontecimentos inexplicáveis. As primeiras mortes causadas pela epidemia são encaradas com absoluta indiferença, procurando-se enquadrá-las na ordem natural dos acontecimentos. Só quando a calamidade começou a atingir uma maior escala, ceifando as vidas de alguns protagonistas do romance é que nos conseguimos aperceber da verdadeira dimensão da catástrofe.
Esta poderosa metáfora sobre os totalitarismos mantém-se perturbadoramente actual. Todas as vitórias humanas contra a barbárie e o absurdo acabam por ser precárias e intermitentes, mesmo que tenhamos que travar estes combates como se fossem definitivos. O teatro do mundo ensina-nos diariamente que “acabará talvez por vir o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará os seus ratos e os mandará morrer numa cidade feliz”.
FONTE: Jornal do Barreiro - Barreiro,Portugal
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