sexta-feira, junho 06, 2008

Mr Big e Mr Small

6/6/2008
Mr Big e Mr Small

Comecei por olhar para aquilo de esguelha, com o desdém que se tem por «lit chick», «literatura de gajas» em tradução literal, embora alguma desta literatura tenha a imortalidade e a imoralidade do cânone feminino e tenha, acima de tudo, muita piada. Nos intervalos do zapping ia parando, e um dia vi um episódio inteiro. Por essa altura já a série estava instalada e eu, que tinha chegado atrasada, pude ver os episódios seguidos em DVD sem ter que esperar pela semana seguinte. Era bom demais.
Candace Bushnell, a autora de "Sexo e a Cidade", a coluna de jornal original, é uma escritora mediana de «lit chick», esperta sem ser tão brutal ou inteligente ou culta como Erica Jong, a de «Fear of Flying», um clássico do género, de 1973. Erica Jong, literária e temerária, foi a primeira a destruir o preconceito de que as mulheres não podiam escrever sobre sexo desbravado na primeira pessoa, e ao mesmo tempo ridicularizar os homens. Na literatura de Jong, mr. Big era, quase sempre, mr. Small. Quer dizer, era uma questão de tamanho.
Candace Bushnell era mais cândida do que Jong, e sabia que não podia escrever apenas sobre as amazonas que mediam o tamanho do membro e do ego masculino, e deixar de lado as midinettes, as cinderelas que andam por aí com o sapatinho de cristal na mão a julgar que perderam o príncipe encantado no baile. E o sapatinho nem era de cristal, era mais caro, era de um designer europeu "gay" com um nome exótico, Manolo Blahnik, Jimmy Choo, etc., e custava 500 dólares o par.
Em Nova Iorque, e Nova Iorque é a outra protagonista da série, os anos 80 trouxeram prosperidade e vaidade ao feminismo contemporâneo. O modelo feminista deixou de ser Andrea Dworkin, lésbica, obesa, feia, desleixada, e passou a ser uma Gloria Steinem reciclada, bonita, musculada, com bom emprego, ginásio, independência e cartão de crédito. E, claro, e por causa disto, deste investimento na carreira, solteira por volta dos 35 anos. E rodeada de amigos "gay" e de namorados inadequados "que não estão muito afim..."
Darren Starr, o genial ("gay") produtor da série, pegou nestes ingredientes e fez o cozinhado final, quatro amigas diferentes umas das outras, que atravessam a cidade que nunca dorme à procura do tempo perdido e da felicidade. Carrie é, como o nome indica, a «carrier», o veículo de expressão principal, e o motor verbal da acção. Miranda, Samantha e Charlotte ajudam a defini-la e definem-se melhor por si mesmas, porque Carrie, a escritora dos estados de alma e a alma dos estados alheios, define-se mais pelos namorados que tem do que por ela mesma, absorvendo e equilibrando as assimetrias e idiossincrasias das amigas.
Não subestimemos Carrie, ela tem os melhores pares de sapatos e os protótipos dos namorados que todas tivemos. Mr. Big e mr. Small, mr. Nice Guy e mr. Bad Guy. Carrie troca sempre o bom tipo pelo mau tipo, o tipo que gosta dela pelo tipo que a ignora, o bom rapaz pelo mau rapaz. Entre Big e Aidan, Carrie fica com Big, que sopra dinheiro, fumo de charuto e arrogância por todos os poros. O marceneiro nunca teve uma hipótese. E entre Big e aquela personagem desempenhada por Baryshnikov (cujo nome nenhuma mulher sabe porque Baryshnikov obnubila tudo), e que acaba a dar-lhe uma estalada na cara, ela fica com a personagem. Até ser salva pela proposta de casamento de Mr. Big. O casamento é o redentor.
As mulheres são, para as outras mulheres, previsíveis. E Carrie é a mais previsível de todas. As amigas são endoidadas, o que quer dizer que são normais e iguais a todas as mulheres, com excepção da caricatura de Samantha Jones, que devora homens ao pequeno-almoço. Nenhuma mulher se identifica com ela mas, no fundo, gostaria de experimentar ser como ela. Sam é ficção pura, é a excepção para avalizar a norma. Sam, no mundo real, estava tramada.
Uma invenção destas, tão rentável, também tem de ter um fim, e um fim feliz. Ana Karenina não é para aqui chamada, nem Madame Bovary. Ninguém se mata e todas acabam por casar com o príncipe encantado. Este território feminino é o dos contos de fadas no século XXI. Com muito humor, muita ironia, e a violência dos finais felizes. Se a vida fosse uma série, eu queria que fosse assim, em Nova Iorque, com um computador, uns trapinhos e sapatinhos, umas amigas e um Mr. Big na ponta do aparo.
Clara Ferreira Alves (PÚBLICO)
FONTE: Público.pt - Lisboa,Lisboa,Portugal
http://cinecartaz.publico.pt/

Nenhum comentário:

Postar um comentário