A propósito de...
Partilho com Mia Couto as lembranças da juventude, os livros de Amado devorados até altas horas da noite no quintalão da casa em que morava, em Luanda, na Vila Alice, sob o perfume das goiabeiras...
Alfredo Prado
Leio a crónica de Mia Couto que o meu amigo Carlos Pinto Santos, editor da revista África 21, me fez chegar, com útil antecedência, por e-mail. Da prosa eivada de poesia do escritor moçambicano, construtor de palavras e de imagens, já eu conhecia. O que não sabia era da sua admiração por Jorge Amado, que tanto influenciou quantos o puderam ler, de um lado e outro do Atlântico.
Mia Couto lembra Jorge Amado e os seus escritos, que tanto marcam as memórias daqueles que, nos anos sessenta ou setenta, a eles tiveram acesso, em Angola, Moçambique, na Guiné-Bissau ou em Cabo Verde.
Livros que me transportavam em viagens imaginárias, com personagens que tanto tinham a ver com as realidades coloniais do mundo lusófono, que teimava em ser um império, em que vivíamos.
Ao ler “Sonhar em casa” partilho com Mia Couto as lembranças da juventude, os livros de Amado devorados até altas horas da noite no quintalão da casa em que morava, em Luanda, na Vila Alice, sob o perfume das goiabeiras e a ameaça dos morcegos, em voos razantes, perturbando leituras e sonhos.
Lembro os dedos grossos de “Liceu” (Carlos Aniceto) Vieira Dias - o compositor que quiseram tornar político – dedilhando no violão “Quando li Jubiabá / me acreditei Antônio Balduíno. / Meu Primo, que nunca o leu ficou Zeca Camarão", do poeta Marco António. Recordo os acordes finos e o jeito solitário do “velho” Liceu, o sorriso aberto e a mão massageando a cabeça, entre cada música. Liceu Vieira Dias que fundou os "N´Gola Ritmos" e que clamou por liberdade para a sua terra; o "velho" Liceu que os juízes de Salazar enviaram para o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, por mais de uma década.
E recordo também “Subterrâneos da Liberdade”, que tanto entusiasmou muitos amigos que, na época, vivenciavam o estertor do regime colonial e o nascer de um país , num parto em que todos queríamos ter um punhado de paternidade. Tal como os “heróis” de Amado, também nós fazíamos bandeirolas, com as cores da liberdade, que lançávamos por sobre as linhas de energia eléctrica. Era Angola e a independência estava à porta.
Depois, os heróis esfumaram-se, desapareceram na voragem da guerra e dos mitos. Muitos dos meus amigos deixaram de poder sonhar, corpos violentados por granadas ou disparos. Mas, os sonhos de Jorge Amado, esses, continuam a acompanhar-me. De quando em quando, vou à estante e volto a olhar para eles.
PS– Obviamente o assunto não trata de qualquer Conjuntura, nem de quaisquer Negócios, como seria de esperar nesta secção, ou canal, se assim preferirem os mais entendidos nestas coisas da Internet. Trata apenas das recordações que sempre nos acompanham, mesmo quando temos de escrever sobre assuntos tão áridos como estatísticas, índices, taxas ou bolsas de valores. Recordações que se fazem presentes, tantas vezes, mesmo quando, por dever de ofício de correspondente, temos de escrever e ler, depois, o que não escrevemos. O que vai acontecendo, com cada vez maior frequência.
FONTE: Portugal Digital - Brasília,Brazil
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