domingo, abril 13, 2008

Agostinho Neto “versus” Alda Lara

Poesia, patriotismo e diáspora
Agostinho Neto “versus” Alda Lara
João Serra
António Agostinho Neto e Alda Lara, médicos e celebrados poetas angolanos, tiveram em comum duas outras características não menos emocionantes: o amor por Angola em versos que circulam pelo Mundo inteiro e também o anunciado e cumprido desejo, por ambos expresso enquanto na diáspora, de regressarem à sua terra. Neto, político visceral e impulsivo, natural de Icolo e Bengo, reflectia sobretudo o país inteiro. Alda, na sua fragilidade sentimental feminina, poetisa de apuradas adrenalinas, tinha em vista horizontes políticos menos programáticos e sobretudo arteriais: a humana e emocional geografia social de Angola, os seus dramas e alegrias, com Benguela por epicentro.

Neto escreveu: “Havemos de Voltar” e falava de política. Alda, mais repentista, jurou numa magnífica ode de grande firmeza patriótica a partir do exterior, nos idos anos da década de 60 do século passado em Portugal, a nostalgia impaciente do regresso:

“Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que me impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer toda esta luta insana,
porque em frente está a terra angolana
a prometer o mundo
a quem regressa.”.

Agostinho Neto tinha uma proposta política, Alda Lara uma escolha sentimental. Ele empunhava uma pistola invisível (na realidade, uma caneta de aparo afiado como navalha) com a qual alvejava os seus inimigos mais próximos: o regime fascista/colonial português e seus executantes.

Lara, a menina de Benguela, mana querida do Ernesto Lara Filho, transpirava sentimentos e capacidades de resposta para a área social. Neto escreveu:

“Minha mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis.
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança.
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera.”

Neto e Alda, no testemunho das suas escritas, acabaram por se complementar. Neto foi o líder político que fundou a nacionalidade angolana e seu primeiro presidente.

Alda, a arauto da sociedade civil. Hoje, Angola não sobreviveria à falta de memória de qualquer deles. Lutaram pela Pátria, em determinado momento e conjuntura, com as armas de que dispunham. O amor deles pelo país, as suas certezas e desafios, tinham muito de simultâneo. Manguchi fez política com a poesia, Alda entregou-se a uma poesia em que a política, estando implícita, é sobretudo do foro dos sentimentos.

Agostinho Neto, de Icolo e Bengo, também sofria as angústias do exílio. No seu livro “Sagrada Esperança”, escreveu o seguinte poema de expectativa emocional, todavia marcado pelo espectro da saudade numa referência ao seu regresso temporário a Angola, em meados da década de 50, antes de voltar a ser preso e conhecer o exílio:

“Quando voltei
as casuarinas tinham desaparecido da cidade.
E também tu
amigo Liceu (Vieira Dias)
voz consoladora dos ritmos quentes da farra
nas noites dos sábados infalíveis”.

Alda Lara, porém, trazia a Angola social à flor dos lábios nos poemas de amargura que escrevia durante a sua diáspora estudantil, pensando no regresso adivinhado e decidido:

“Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar
o meu canto ao Criador!
Porque me deu vida e amor
para voltar.

Mas Agostinho Neto, poeta suficiente nos intervalos da política, agitador, estratego político e conspirador independentista com sucesso demonstrado pela independência de Angola em 11 de Novembro de 1975, já ia mais longe:

“Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar.
(...)
Havemos de voltar
à Angola libertada
Angola independente”.

Voltaram ambos para ser sepultados na sua terra. Primeiro Alda, tarde demais para intervir no tecido social do país, como pretendia. Depois Neto, que programou e fez cumprir a independência nacional devolvendo o país aos seus filhos, finando-se três anos depois. Em glória, mas também sem muito tempo para usufruir e deleitar-se com o Estado livre que o seu pulso de chefe fez brotar.

Alda Lara, a poetisa de Benguela que faleceu prematuramente em 1962, anda esquecida em Angola por uma certa intelectualidade que, não obstante, não desconhece a importância da sua obra literária e o lugar de excelência que lhe cabe na literatura angolana, em que foi e é até hoje a voz feminina de maior sensibilidade, aliando ao acervo poético significativo que deixou, uma oficina de escrita passível de ser classificada já na década de 60 do século findo como de modernidade.

Cantou Angola, seu país idolatrado em cada verso de poemas destilados por uma alma grávida de fantasias, sonho e saudades da pátria, nas longas noites de Benguela, Lisboa e Coimbra, onde durante anos estudou e se formou em Medicina. A herança poética legada transpira a exílio, saudade obsessiva da terra angolana, suas gentes, os lugares da infância, os amigos e as expectativas de um futuro em que pretendia participar logo que possível com o seu contributo profissional de médica.

Os seus poemas, editados postumamente num volume único de obras completas pelas Publicações Imbondeiro, da Huíla, constituem um testemunho de angolanidade e um tesouro literário que as novas gerações têm o direito de conhecer. Deixou de escrevê-los em 30 de Janeiro de 1962, apenas alguns dias antes de ser sepultada no pequeno cemitério do Dondo, perto de uma acácia rubra que, por certo, passou a florir o ano inteiro em homenagem à sua sensibilidade e às suas odes de refinada arquitectura poética, invulgar para a época.

No poema que intitulou “Presença Africana”, Alda Lara, a poetisa de Benguela, escreveu os versos épicos e comoventes que se seguem:

“E apesar de tudo
ainda sou a mesma!
Livre e esguia
filha de quanta rebeldia me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra puro e incerto...

Este discurso poético, claramente nacionalista, cultural e reivindicativo de Alda era já um grito de revolta quando tinha a idade de 23 anos. Quantos de nós, transportados a essa época, gostaríamos de ter sabido escrever com a mesma aptidão literária sentimentos tão simples, mas de tanta determinação e esmerada técnica. E, no entanto, muitos dos que beberam inspiração poética (e até patriótica) na obra desta insigne filha da Cidade das Acácias Rubras, irmã do também notável poeta Ernesto Lara Filho, fazem hoje vista grossa à importância do seu testamento de (também ela) precursora de uma pré-poesia angolana que à época despontava.

Alda Pires Barreto de Lara e Albuquerque (o último dos apelidos obtido por casamento com Orlando de Albuquerque, médico moçambicano que trabalhou longos anos em Angola e que foi também um conceituado escritor e crítico literário) nasceu em Benguela em 9 de Junho de 1930 e ali passou grande parte da sua infância, por certo a coleccionar emoções que derramaria mais tarde na poesia que escreveu.

Filha de um comerciante abastado, foi criada no característico meio crioulo da urbe das Acácias Rubras da década de 30, onde apesar da circunstância colonial não faltavam cultores da velha escola republicana portuguesa anterior ao Estado Novo, a par de remanescentes dos tempos da tipóia e do comércio sertanejo. A princesa das poetisas angolanas teve, como era próprio do seu tempo, uma educação profundamente cristã. Seu marido escreveu em breve biografia dela, na obra “Alda Lara - a Mulher e a Poetisa” (Publicações Imbondeiro, 1967), que essa formação multidisciplinar lhe conferiu sempre “um vincado espírito de liberalismo”. Fez a instrução primária em Benguela, sempre franzina de corpo e de saúde, frequentando depois um colégio de madres em Sá da Bandeira (actual Lubango), onde prosseguiu estudos até ao 6º ano. Depois partiu para Lisboa, onde terminaria os estudos liceais e frequentou a Faculdade de Medicina, não se limitando a aprender a curar pessoas, mas destacando-se também como dirigente estudantil. E ainda arranjava tempo para se dedicar à literatura, fazendo conferências e palestras, escrevendo alguns dos belos poemas que nos deixou e convivendo com outros jovens literatos angolanos que, como ela, viriam a ser celebrizados na literatura nacional.

Em Lisboa, lidou com poetas seus compatriotas como Alexandre Dáskalos e Agostinho Neto. E seguia de perto a produção poética feita em Angola por outros vates efervescentes que viriam a ser emblemáticos, como António Jacinto, Viriato da Cruz, António Cardoso e Aires de Almeida Santos.

Casou em Portugal com o médico Orlando de Albuquerque, após uma breve visita a Benguela para visitar a família, indo depois viver em Coimbra, onde o marido exerceu clínica antes de ser transferido para Angola. A sua saúde era, já então, precária. Sofria de crises de asma e padecia de uma úlcera duodenal. Mas quando concluiu o curso de Medicina já era mãe de quatro filhos, um dos quais lhes seguiu as pisadas de médico, Pedro Albuquerque, especialista em oftalmologia e oficial das Forças Armadas Angolanas (FAA), onde continua a exercer carreira clínica profissional e chefia de serviços.

Alda, que após a transferência de Orlando de Albuquerque para o hospital de Cambambe ficara em Coimbra para terminar o seu curso de Medicina, que concluiu com elevada classificação ao apresentar uma tese de licenciatura sobre psiquiatria infantil, não resistiu por muito mais tempo ao apelo do seu inesgotável amor por Angola, nem às saudades da família. Em Agosto de 1961, juntou-se ao marido na pequena localidade, ali trabalhando com ele, médico de serviço na terra. Mas apenas teve mais cinco meses de vida após o regresso, dado o seu estado clínico terminal. Faleceu em 30 de Janeiro de 1962.

Foi sepultada no velho cemitério do Dondo, onde uma acácia de belas flores vermelhas, a avivar lembranças da sua meninice em Benguela, deve ter decorado os seus versos.

Ela e Neto foram os dois mais altos índices da nacionalidade cultural de Angola, homem e mulher. Era tempo de serem recuperados nas suas particularidades menos afloradas: falo da faceta sentimental de Agostinho Neto e do referencial político da poetisa de Benguela. E acho que valeria a pena os especialistas ocuparem-se disso.

FONTE: Jornal de Angola - Luanda,Luanda,Angola

3 comentários:

  1. Anônimo7:25 PM

    Adorei o artigo, sou uma angolana da terra das acácias rubras que admira Agostinho Neto e tenho pena que nao se divulgue mais a sua obra. Vivi em Angola até pouco depois da sua morte e fui aluna de um dos filhos de Alda Lara no Lobito. A par dos autores contemporaneos, deviam ser mais divulgados e promovidos oss autores que ajudaram a construir a cultura e história de Angola.

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  2. Anônimo11:49 AM

    Nasci da terra das acácias rubras, depois da independência mas aprecio,amo e admiro os poemas de Neto. Mesmo naquele tempo ele já tinha uma visão até daqui há 50 anos é impressionante a sua inteligência.Só teríamos vantagens se as suas obras fosses mais divulgadas. zandira Fernandes.

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  3. Anônimo11:50 AM

    Nasci da terra das acácias rubras, depois da independência mas aprecio,amo e admiro os poemas de Neto. Mesmo naquele tempo ele já tinha uma visão até daqui há 50 anos, é impressionante a sua inteligência.Só teríamos vantagens se as suas obras fosses mais divulgadas. zandira Fernandes.

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