segunda-feira, março 24, 2008

“A Voz Igual”, de Agostinho Neto uma ode triunfal meta-pessoana


“A Voz Igual”, de Agostinho Neto uma ode triunfal meta-pessoana
José Luís Mendonça

Uma Vitória Anunciada sobre o Triunfo das Sensações

O triunfo premonitório de uma revolução em África e o triunfo consagrado da máquina no dealbar da "nova revolução industrial" europeia no início do século XX, serviram de objectos poéticos para dois grandes cultores da Língua Portuguesa, cada um devidamente inserido no seu meio e na sua época: Agostinho Neto e Álvaro Campos (engenheiro criado à imagem e semelhança de Fernando Pessoa).

Quarenta e seis anos depois de A. Campos ter escrito a "Ode Triunfal", a este e outros poemas de cariz exaltador terá provavelmente A. Neto ido beber a forma e o mote evocativo que resultariam no genial poema ‘A Voz Igual’.

Neto começa por nos propor a vitória “sobre a condição moribunda”. O poema "A Voz Igual" abre-se num grande plano que serve de apresentação do espaço geográfico onde desponta um “amanhecer vital”. Trata-se de uma primeira estrofe de apenas cinco versos que resumem o pensamento, os sentimentos que motivaram o poeta, que o inspiraram a escrever o poema mais longo do livro "Sagrada Esperança".

Neste quinteto, Agostinho Neto recorre a uma figura de estilo muito do seu agrado: a antítese, que contrapõe o “amanhecer vital” (1a. estrofe) à “condição moribunda” (5a. estrofe). Vida e morte, luz diáfana e escuridão. Álvaro de Campos também começa a sua "Ode Triunfal" “à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica”. Só que, enquanto o poeta de Kaxicane evoca a luz natural e o sentir colectivo (“caminhamos já vitoriosos”), o engenheiro Álvaro de Campos evoca o reflexo ferino da luz artificial das fábricas e extravasa as suas sensações individuais (“tenho febre e escrevo”).

Atente-se que logo na segunda estrofe, Neto afirma o poder transformador das “sensações orgânicas sobre o solo pátrio”, enquanto que A. Campos diz “querer cantar com um excesso de expressão de todas as minhas sensações…” Porém, na terceira estrofe, verificamos uma coincidência intencional com a qual o poeta angolano imprime ao seu verso a força da vida moderna, ligada à necessidade vital de os angolanos virem a ombrear com o Ocidente desenvolvido. Porquanto aí se fala do “operário da fábrica consciencializando a máquina”, e não já da máquina penetrando com o seu espasmo os nervos do poeta, esta estrofe define a linha ideológica interventiva do poema "A Voz Igual", escrito por quem não tinha muito tempo para fazer arte pela arte. Fazendo render com eficiência o capital da ferramenta poética, Agostinho Neto proclama “a nossa voz gritando igual no seio da Humanidade/ na mesma hora em que a mentira/ se esconde na covarde violência.”

Pela sua estrutura, "A Voz Igual" é uma ode. E, embora Álvaro de Campos use e abuse magistralmente da personificação e dê voz obsessivamente repetitiva aos sons dos maquinismos industriais, por meio de férreas e ruidosas interjeições, nem por isso Neto deixou de exaurir os seus dotes imagéticos com o uso da repetição e de servir-se de aliterações que se assemelham, de um modo tão literalmente diferente só possível em poesia, àqueles recursos da ode pessoana.Tudo nos leva a crer que Neto quis escrever uma ode materialmente original, de conteúdo reivindicativo das aspirações profundas do seu povo, contudo formalmente à maneira de Pessoa, para dar mais eficácia à mensagem que queria colocar perante os olhos dos leitores da época – e de todas as épocas, visto que a poesia é eterna – o que mostra as marcas de um poeta a quem ajudaram engenho e arte, como diria Camões.

Pelas características assinaladas, constitui pois a "A Voz Igual" uma ode triunfal dialecticamente anti-pessoana, ou meta-pessoana, dado o seu engajamento sócio-político. Possui ela um elemento infraestrutural, que é o elemento aglutinador, reflexivo, revelador da intertextualidade estilística e um outro elemento superestrutural, este de cariz ideológico, que será o elemento diferenciador em relação ao poema do engenheiro das sensações maquinizadas.

É sobre aquela moldura estética comum que faremos a separação dos objectos-estímulos diferenciadores dos dois discursos poéticos, para tecer as linhas do presente estudo visando buscar o traço, ou o contorno da africanidade e da específica angolanidade vigente no poema "A Voz Igual".

A Apropriação do Modelo Estético Pessoano

Diz Arlindo Barbeitos, a propósito da relação entre vítima e opressor, que “o desenlace deste enredo exige que o negro, na reconquista de si, transcenda a redução biológica, chegue à humanidade do opressor e, depois, ultrapassando-a, atinja a dimensão máxima. (…) É precisamente neste âmbito, para além de demais considerações, sobre o político, que excluo, que Agostinho Neto excede. (…) O acto de escrita (…) força ao uso do idioma do outro, que também é seu, visto que dele se apropria. E o seu domínio maior consiste em escrever, nele, poesia.”

Depois da proposição a que nos referimos na introdução, o poema "A Voz Igual" continua a desenhar-se nos marcos da moldura estética da poesia simbolista que marcou a fase inicial de Pessoa.

A simetria formal que se verifica entre os dois poemas advém não só da eleição do maior poeta português do século XX como modelo poético atribuível a este poema de Agostinho Neto, mas ainda do facto de, como escreve Nelly Novaes Coelho, Fernando Pessoa ter assumido, “a tarefa fecundadora que (a sua criação) iria cumprir no processo renovador da poesia dos seus contemporâneos.” Existe, portanto, um substracto messiânico e revolucionário, subjacente às obras dos dois autores que, para além de outros desideratos individuais, presume uma inovação da poesia em Língua Portuguesa. Na fala poética de ambos os autores, está implícito “o "eu" do Poeta-ser-privilegiado, – aquele que dá origem à Poesia e através de cuja voz a humanidade expressa a sua evolução em marcha”, no dizer da autora brasileira.

Embora com a distância de quase meio século no manuseamento da forja literária triunfalista, Neto não deixou, por isso, de ser contemporâneo de Pessoa e o facto de ter vivido na Europa levá-lo-ia a sentir, como o seu confrade português, “o vertiginoso viver destes tempos, impulsionados pela Tecnologia e pela Velocidade da Máquina”. Esta vivência comum, aliada ao pendor revolucionário que os animava subjectivamente, imprimiu à sua criação, pelo menos à que aqui nos propusémos analisar, aquilo que Nelly Coelho definiu como “o ritmo torrencial dos poemas sensacionistas”.

Esta torrente de imagens e sensações está patente na correnteza de construções verbais que arrasta o leitor de ambos os poemas, desde a proposição até à síntese que fecunda a palavra dita. Assim, recebemos em "A Voz Igual" um enumerar na mesma estrofe (a terceira) de “flores, homens, o lavrador, a terra, o operário da fábrica, a máquina, a nossa voz, Humanidade, a mentira, a violência”, elementos que representam “uma grande ânsia de fundir "espaços" distintos e distantes em um só espaço abrangente e perene” (estamos ainda a citar Nelly Coelho). Enumeração essa coincidente com a da "Ode Triunfal", que alinha “febre, os motores, natureza tropical, grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força, o passado e o futuro, correias de transmissão, êmbolos.”

O uso do gerúndio nessas estâncias, dada a sua função intemporal, empresta ao dizer poético essa abrangência e essa perenidade: “possuindo, consciencializando, gritando” (A Voz Igual); “olhando, rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, fereando, fazendo-me” (Ode triunfal).

Mas é na quarta estrofe do poema de Neto que começamos a sentir a eloquência da palavra aliada a imagens sensacionais conseguidas com a escolha criteriosa de fonemas erectos e sólidos, como “impérios, pilares, traços paralelos das vias férreas, argamassas, pontes e estradas, barragens”, que correspondem em Campos a “ferro, força, século cem, átomos, êmbolos”. A envolvê-los está uma aura incrustada de “riquezas, angústia pulsátil dos braços, águas, mãos formidáveis, brilho das metrópoles, ouro e diamantes, óleos e farturas, visionária esperança, estrelas, dia”, no primeiro, e “febre, fogo, canto, Platão e Virgílio, luzes eléctricas, Alexandre Magno, Ésquilo, correias de transmissão, excesso de carícias” no segundo.

Note-se que todo este conjunto de fonemas está conotado com tons agudos, de que a própria acentuação das palavras disso dá conta, com o abuso de consoantes simples ou duplas em "r", "s" "ç", vogais em "i", pluralização e a partícula "e". Abstraindo o edifício semântico particular das duas obras, polariza o leitor essa torrente enumerativa de imagens e sensações, essa eloquência avassaladora das construções sintácticas em toda a sua extensão, que seria exaustivo enumerar aqui.

Neto não se socorre, porém, como Álvaro de Campos, de aliterações, como ‘hé-lá, ah, ó, eh-lá-hó, eia, hé-hó, ho-o-o-o, z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!”, que emprestam à "Ode Triunfal" uma sonoridade que o próprio poeta define como o “fúlgido e rubro ruído contemporâneo,/ (…) ruído cruel e delicioso da civilização de hoje”. No tratamento poético do objecto particular de sua eleição, Neto substitui, com o mesmo objectivo de formar arranjos auditivos, “um princípio comum à grande massa dos poetas africanos: a repetição”, como bem dizem Pierrette e Gérard Chalendar. Vêmo-la no uso excessivo das preposições compostas "no/na/nos/nas, do/da/dos/das" desprovidas da vírgula (na marimba no chingufo no quissange no tambor/ no movimento dos braços e corpos), ou em versos como: “livres do constrangimento livres da opressão livres “, ou ainda “com ódios amizades traições riso choro força/ fadiga energia ânimo desânimo silêncio/ ruídos de terramoto soltos pelas mãos”. Lemos estes versos sem perder o fôlego, já que não somos autorizados a pausa alguma pela carência propositada da vírgula. Lemo-los sob um ritmo frenético, imparável, sequencial, fazendo vibrar nas nossas cordas vocais os mesmos efeitos auditivos provocados pelas interjeições da "Ode Triunfal".

FONTE: Jornal de Angola - Luanda,Luanda,Angola

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