quarta-feira, fevereiro 27, 2008

regionalismo - Realismo fantástico enlaçado com poesia - Dorine Cerqueira

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Dorine Cerqueira
Poesia regionalismo - Realismo fantástico enlaçado com poesia
Dorine Cerqueira
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.
(Castro Alves)
A primeira descoberta dos mágicos foi a de esquecidos extratos de consciência e até de religiões esquecidas debaixo da superfície civilizada, sobretudo em populações rurais de regiões atrasadas e menos acessíveis. Quase ao mesmo tempo, a bruxaria e outras superstições foram identificadas como resíduos de religiões pré-cristãs. Ao colaborar com Stravinski em versão moderna de superstições russas, Charles-Ferdinand Ramus descobriu la grand peur dans la montagne nos povos de sua terra suíça.
O italiano Corrado Alvaro foi também um “realista mágico”, considerado precursor do Neo-realismo, porque o tema comum das suas obras é a vida das populações rurais na sua província natal, a Calábria. Foi-lhe atribuído o verdadeiro “realismo mágico” ou “poemático”, pela atmosfera onírica, “a realidade fantástica dessa realidade tão fielmente observada” (1). Ele deformava a realidade com objetivo político: antifascista.
Segundo Otto Maria Carpeaux, semelhante à Calábria de Corrado Alvaro, econômica e socialmente, é o Nordeste brasileiro, cujos escritores, depois de 1930, renovaram, em estilo neonaturalista e com forte tendência social, o romance regionalista: Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado (2). Os neo-realistas portugueses, que estão mais perto dos italianos, imergiram também, por influência de Jorge Amado, na tendência e no gosto por uma prosa poética.
Em sua obra, Jorge Amado dá maior ênfase aos problemas sociais. É considerado um escritor de grande talento narrador e grande força poética, “um contador de estórias”, como ele mesmo afirma. Sua linguagem, para muitos ingênua, é rica de elementos populares e folclóricos, e de grande conteúdo humano, além de descontraída e oralista. O escritor é um dos representantes do regionalismo brasileiro, e seus romances documentam a passagem de uma sociedade agrária para a industrial e trazem a preocupação com os problemas coletivos, ambientando suas narrativas no quadro rural e urbano da Bahia. Sua obra, por estas e outras faces, é importante para a compreensão de nossa realidade social e histórica.
Amado escreveu sobre a infância abandonada e delinqüente, meninos de rua (Capitães da areia); a miséria do cais do porto da cidade (Mar morto); os retirantes da seca, o cangaço (Seara vermelha); a exploração do trabalhador urbano e rural (do cacau) e o coronelismo latifundiário (Cacau, Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela, cravo e canela, Tocaia Grande); denuncia a discriminação racial, aborda a vida do povo, a participação política, cultural e social das camadas humanas (Tenda dos milagres, Pastores da noite), entre outros temas.
O autor fixa ainda toda a atmosfera de encantamento e mistério da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos: os orixás, os pais de santo, as rezas em nagô para Iemanjá, Oxóssi, Oxalá..., os negros e as populações operárias, os saveiristas do Recôncavo baiano, os pardieiros do velho Bairro da Sé, com seus malandros e suas prostitutas. Enfim, o mundo mágico da Bahia. E, num processo intertextual, ele entrelaça a fantasia na realidade da vida do povo baiano, e todas as crendices parecem se transformar numa força superior às teorias, força atávica, mitos que a inteligência do escritor assimila, como personagens ativos e presentes. Ele interpenetra, às vezes, o mito e a realidade, criando um clima sobrenatural e grandemente poético, como em Mar morto: Iemanjá, Oxóssi, os demais orixás e mães-de-santo; em Jubiabá: nos despachos, em todos os feiticeiros, no poder milagroso das ervas, no olho da ruindade, nos cabelos perfumados da princesa de Aiocá, em Iansã, Exu e Ogum, no lobisomem, na caipora e nas mulas-de-padre, na macumba e no candomblé, e na poesia da cidade negra, numa intertextualidade.
O estilo de Jorge Amado caracteriza-se por dois modos opostos: a crueza da linguagem e o tratamento poético do tema. O duramente realista e o de clima de poema, pois sua força poética está principalmente na conjugação do tema com a concepção das coisas populares que vivem animicamente em seus romances. Para Miécio Táti, o autor corre o risco de vir a jogar “artisticamente” com o sofrimento alheio, de tal forma que a simpatia do leitor seja levada a interessar-se mais pela “expressão poética do fato”, do que pelo “próprio fato” (3). O escritor confessa contudo que continua comprometido com o povo e que seus livros “buscam servir à transformação da sociedade”.
Em Seara vermelha, um ritmo ternário é repetido poeticamente ao longo do livro. Num itinerário cansado e sofrido, Jacundina recordava-se dos três filhos que haviam partido: “... cada um por sua vez, cada um por um caminho, cada um para um destino” (p. 22); Zefa, em frente aos seus santos, iluminados por uma lamparina: “Não eram festas que ela enxergava com seus olhos de medo, não eram acontecimentos felizes, não eram boas notícias as que ela tinha para dar” (p. 39); “Seus olhos refletiam então o terror, fulgia com o corpo, gritava de medo” (p. 46).
Essas crendices aparecem na primeira parte do livro, com a figura de Zefa, profetizando desgraças, transformando-se, na hora do entardecer, cheia de presságios e agouros: “Desgraçados... Desgraçados...” (p. 43); Zefa começara a anunciar o fim do mundo, repetindo as trôpegas palavras de cada crepúsculo: - O castigo de Deus tá perto, ninguém vai se salvar...” (p. 45). É o trágico oracular, presente também em Adonias Filho (Corpo vivo), pela boca da velha profetisa Hebe: “O mundo sabe que ela anuncia o futuro” (p. 17).
Seu complexo cultural está presente nas literaturas primitivas, que se manifestam através da oralidade, com base nos autos e nos cancioneiros anônimos. Jorge usa o exagero de um recurso literário, visando o entrelaçamento indissolúvel entre a linguagem de suas figuras populares e a força folclórica dos grandes temas de seus livros. Interpenetra, às vezes, a fábula e a realidade, criando para esta um clima sobrenatural e comparativamente poético, quando descreve, por exemplo, a caatinga; “... no mais são as palmatórias, as favelas, os mandacarus,... os xiquexiques, as coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda a beleza, a flor de uma orquídea” (p. 59).
No coração seco da caatinga surgem os cangaceiros e os beatos mais famosos, que arrastam no seu passo uma dramática multidão, “enchendo o sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca repleta de profecias o fim do mundo e o sofrimento dos camponeses” (p. 61). Antes, eram Lucas de Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião. Hoje, “habita Lucas Arvoredo com seus jagunços”. Antes, surgiram Antônio Conselheiro e o beato Lourenço. Hoje, do mais distante do deserto, surge, “com as mesmas alucinadas palavras de profecias, o beato Estêvão” (p. 61), que lembra o beato Sebastião, do filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol: “O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”. Uma voz de homem chega, no escuro, repetindo: “Disque é o fim do mundo... Disque já tem mais de quinhentos homens atrás dele...” (p. 74). Falava do beato Estêvão, que andava por perto. Vinha vindo no caminho da cidade, “muitos sertanejos armados o acompanhavam, homens sem terra, trabalhadores despedidos de fazendas, outros batidos pela seca, fugitivos da justiça (...) vinham todos fazendo penitência, rezando salmos e padre-nossos...” (p. 91). Falava atemorizado: “... e diz que faz milagres, cura doente que nem Padre Cícero... apareceu num faz muito tempo, vem andando pro lado do mar” (p. 74); “suas profecias, de que o mundo ia se acabar e era necessário rezar e lançar cinzas sobre os cabelos” (p. 248).
Ninguém sabia de onde vinha o beato, sua idade ou seu nome todo. Semelhava “uma árvore majestosa, um rio caudaloso, uma cachoeira ruidosa. Quando os olhos azuis, comumente bondosos e quentes, olhos que chamavam e animavam, ficavam parados, perdidos na distância, vendo coisas que os demais não viam, quando davam medo e frio” (p. 241). Os peregrinos chamavam-no carinhosamente de “meu pai”: Sua benção era milagrosa, “curava doenças, cicatrizava feridas, evitava praga nas plantações, moléstias nos animais, expulsava os maus espíritos e fechava o corpo dos homens às mordidas das cobras venenosas e às balas assassinas” (p. 241). Essas coisas se passaram no sertão, onde “a fome cria bandidos e santos”. É a utopia dialética: realismo/imaginação.
A ave agoureira surge na página 248: “... na hora do entardecer, ao grito agourento das corujas”. Dinah, que era supersticiosa, contava as pessoas e os bichos da triste comitiva: “ - T’esconjuro... Treze vivente...” (p. 66).
Em Seara vermelha, está presente também o culto ao fogo, no acampamento do beato. É a previsão mágica, da página 237, na hora do crepúsculo, com o comovente espetáculo: “era o acender das fogueiras no acampamento dos sertanejos (...) Tinham um significado religioso, oferendas de fogo ao Deus que ia destruir o mundo e castigar os homens, colocadas simetricamente, um determinado número, sempre vinte e uma, só o beato sabia por quê” (3x7). A lenta procissão percorria as ruas do acampamento, às sete horas da noite, parava diante de cada uma das fogueiras, quando as vozes se elevavam: “Pra sempre louvado...”
É o tempo da criação de um mundo novo - sete (dias) - o Terceiro Mundo. Seria a continuidade do mal, pelos séculos dos séculos, ou a Via-Crucis dos povos da América Latina: “... ali no acampamento, entre as fogueiras sagradas, os sete poços bentos, ouvindo as profecias do beato, não pareciam estar mais no mundo de todos os dias. Era como uma alucinação, não havia limites entre a realidade e a imaginação” (p. 238). Semelhante ao culto ao deus Tohil, Doador do Fogo, em El señor Presidente, do escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias, intertextualmente. Os peregrinos confraternizavam-se com os cangaceiros. E a melodia ganhava volume ao parar as orações: Lá vem Lucas Arvoredo,/ Armado com seu fuzil.../
Os navios-gaiola que fazem a viagem entre Juazeiro (Bahia) e Pirapora (Minas) impressionam os sertanejos, com suas rodas de pás traseiras, seu casco de ferro, sua chaminé e seu apito. As barcas de madeira, “com esculturas primitivas na proa - cabeça de mulher ou de animais - parecendo imensos animais fantasmagóricos” (p. 121). São as carrancas do São Francisco que, segundo a crendice, espantam os demônios das águas, com sua expressão aterrorizante e feia. Na página 148, podemos observar o tratamento poético sugerido pelo rio São Francisco: “... os pequenos navios de roda dormiam à espera da hora de partir, e ouviam embevecidos o barulho que o rio fazia no seu caminhar sem descanso”. O autor personifica o rio e os navios-gaiola, usando metáforas e comparações: “ - Tá andando pro mar...” (p. 121); “... a barca ficava imóvel como uma enorme ave adormecida sobre o rio” (p. 123).
A velha Jacundina, no final, compreendera que sobreviveria aos filhos e netos: a mulher forte, como a Úrsula (símbolo da Mãe-Terra), de Cien años de soledad, do colombiano Gabriel García Márquez. A família se separa. Os filhos deixam pai e mãe em busca de seu “destino”. Seu neto, Tonho, o próximo “homem novo” que surge desse conflito, resume em si a realização de todas as esperanças: como Moisés, no êxodo, a geração intermediária é anulada para que as esperanças na Terra Prometida não se contaminem com os ranços da servidão (4).
NOTAS
1. CARPEAUX, Otto Maria. “Realismo mágico novamente”. In: Tendências contemporâneas da literatura. Um esboço. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
Idem, ibidem.
TÁTI, Miécio. “Estilo e revolução no romance de Jorge Amado”. In: Estudos e notas críticas. Rio de Janeiro: MEC-INL.

PRADO, Maria Consuelo Albergaria. “O romance nordestino de 30: Seara vermelha, de Jorge Amado - As relações eu/outro nos grupos sociais fechados e as formas de comunicação entre eles”. In: Cultura. Brasília, nº 20.
Dorine Cerqueira é professora de literaturas, jornalista e ensaísta.
Autora dos livros Travessia I (De Guimarães Rosa a Gregório de Mattos); Neo-realismo: a montagem cinematográfica no romance e A ironia trágica em A Morte de Quincas Berro D’água (tese). Atualmente elabora projeto sobre a influência da cultura do cacau em escritores da literatura lusófona, para a Universidade Estadual de Santa Cruz - Uesc.

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