sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A pele iniciática das palavras

Mulher Huambo
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A pele iniciática das palavras
Poesia da angolana Ana Paula Tavares
Ler a poesia da angolana Ana Paula Tavares é permitirmo-nos uma experiência senorial inominável, porquanto as suas palavras têm pele, sons, cheiros, sabores e a torrente do arrepio.
«Dactilas-me o corpo / de A a Z / e reconstróis / asas / seda/ puro espanto /por debaixo das mãos /enquanto abertas /aparecem, pequenas/ as cicatrizes», escreveu a autora no poema Alfabeto, em Ritos de Passagem, o seu primeiro livro de poesia, editado em Angola, em 1985; nascia, então, uma poetisa e colonizava-se a literatura lusófona.
Agora reeditado pela Editorial Caminho, que o apresentou no dia 20 de Fevereiro, em Lisboa, Ritos de Passagem surge com ilustrações impressivas de Luandino Vieira. É uma leitura cromática, a manchas de café, tinta-da-china, sensualidade e erotismo, comprovando-se que o escritor angolano é um dos cativos dos ritos da autora de Manual para Amantes desesperados.
Ao todo, são vinte e quatro poemas dispostos em três partes («De cheiro macio ao tacto», «Navegação circular» e «Cerimónias de passagem»), ou três «andamentos», como diz Inocência Mata no Prefácio, aludindo às etapas do processo de aprendizagem do Eu poético nesta cerimónia vocabular iniciática.
Feminina, confundindo-se com a terra e a nação, também femininas, nas quais se prolonga e se explica, a poesia de Ana Paula Tavares tece-se nos anseios primordiais. Nos frutos, quase todos de África, numa sequência de poemas, a autora desvela, com depuração, o mistério feminino. Assim surge a «abóbora menina», com as fases da preparação da mulher («folhinhas verdes/ flor amarela/ ventre redondo»), primeiro menina, «de segredos bem escondidos», depois adolescente, «procurando ser terra», e depois fêmea fecunda que espera que «nela desaguam todos os rapazes»; assim irrompe o erotismo do Mamão, que, cortado longitudinalmente, mostra a carne rosada e húmida, declara a metáfora do desejo e do prazer, a «Frágil vagina semeada /pronta, útil, semanal», onde se formam as ânsias, «se alargam as sedes» e «no meio cresce / insondável / o vazio…».
No poema «Colheitas», traça-se o percurso da mulher em paralelo com o da natureza, com os círculos que completam sobre si mesmas, a natureza por anos de sementeira, a mulher pelos vinte e oito dias do seu ciclo menstrual: «uma viagem /nasce-se, brota-se do chão /e dez anos depois o primeiro / forma-se espera e cai / por gravidade / ao vigésimo oitavo dia».
Noutro poema, a mulher surge fragmentada no seu ser e na sua condição, mas também reivindicando a sua unicidade, a sua utopia, o desejo de libertação; é a mulher confrontada com os seus limites, mas também confrontada com o apelo fundo para os ultrapassar e a vontade de dar conta disso a todas as mulheres:


Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado.

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Ritos de Passagem, Ana Paula Tavares; Editorial Caminho, Lisboa, 2007
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FONTE: Kaminhos On-line - Covilhã,Covilhã,Portugal

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