Os malabarismos de uma consciência intensamente lírica
A poesia de Almandrade faz-se, antes de tudo, daqueles temas essenciais da condição humana, tão preciosos para os homens do nosso tempo, distanciados da razão de existir. Uma perplexidade em constante estado de nascimento acorda, aos olhos do leitor, uma realidade múltipla e absurda. Ao lermos os textos do poeta baiano, deparamo-nos com a densidade do real e com todos os seus limites e frustrações: “cidade perplexa/ embalagem hostil/ inútil divertimento”. O eu lírico dos poemas de Almandrade gasta-se nas arestas do mundo, rasga-se nos ângulos dessa realidade limitada, em um viver de raríssimas possibilidades de salvação ou transcendência (encontradas, como veremos a seguir, apenas no erotismo e na epifania da palavra lírica): “O andarilho inocente/ repete o caminho/ sem encontrar/ uma saída”. Esse esgotamento das possibilidades do real lembra-nos dos angustiosos labirintos Kafkianos, em que todas as direções nos encaminham, na verdade, para lugar nenhum. O mesmo clima de abafamento, de aprisionamento, entrevisto na ficção de Kafka, pode ser percebido nesses poemas de agudeza existencial. Drummondiano, sem deixar de possuir uma voz própria e peculiar, Almandrade recria, portanto, aquele clima claustrofóbico da poesia do autor itabirano, tão bem expresso pela persona inventada por Drummond, ou seja, o seu famoso José.
Essa é uma poesia que, antes de instaurar a segurança, desalenta-nos com as incertezas, com as dúvidas. Já na antiguidade, Sócrates alardeava a importância do questionamento, em detrimento das respostas. Pois bem, na poesia de Almandrade, temos a mesma sede de indagação, a mesma escavação feita por perguntas que não se findam, que instauram uma perpétua pesquisa do viver: Pensar é/ abrir portas,/ migrar/ para o desconhecido”. Em versos sucintos, verdadeiras farpas de auto-iluminação, o poeta de Malabarismos de Pedras amplia a potência do signo poético, como se a palavra funcionasse como um verdadeiro golpe a acordar o leitor de sua letargia, de seu sedimentado hábito de simplesmente estar no mundo: “Dormir,/ pode ser uma covardia/ diante das circunstâncias/ e suas incertezas”. Essa vigília em perene estado de exacerbação, funciona, portanto, como um farol a desmascarar as farsas dessa nossa realidade tão estigmatizada pela mídia e pela ideologia do consumo. Ao lermos Almandrade, sublinhamos, em nosso âmago, a força da consciência e a sua capacidade de detonar as verdades estereotipadas de nossa era pós-moderna.
Essa mesma consciência, vibrante, intensa, também vasculha a própria fuga do tempo, e a revela, sem nos poupar e sem nos iludir: “a vida quando vazia/ é um acúmulo de rugas”. Somos seres irremediavelmente efêmeros e passageiros e, diante dessa situação existencial, resta-nos somente a epifania da própria poesia, teia a nos interligar a um eterno agora (apenas retido pela memória), momento pulsante, orgiástico e, por isso, intensamente vivo mesmo em face da dissolução do existir: “as coisas retidas na memória/ acariciam a eternidade”. É dessa revelação da palavra, feita de som e fúria, que nasce um doce erotismo, um terno desvelo pelo corpo feminino: “Em silêncio/ a intimidade feminina/ acende o mistério/ que faz lembrar/ o aroma dos devaneios/ que transporta/ o fim da tarde”. Dessa forma, diante das amarras impostas pelo destino e pela realidade, nasce a iluminação do desejo, energia a latejar o corpo, a incendiar a graça de ser: “Nem mesmo/ a musicalidade dos pelos/ é maior que o apelo/ da cicatriz do nascimento”.
A poesia de Almandrade, portanto, recorda-nos o mito de Sísifo. O homem contemporâneo, acossado, muitas vezes, pelo vazio e pela alienação, típicos em um tempo de consumismo desenfreado, está condenado a rolar, em infinitas vezes, uma pedra ao topo de um monte. Todavia, resta a esse homem, ao descer, de mãos vazias, a mesma colina, a visão pródiga de um mar, feito de intenso azul, prazer e glória a saciar-nos com o milagre da poesia: “Agora é dia, o sol queima a letra”.
*Nasceu em Belo Horizonte. É mestre em literatura brasileira, poeta e professor universitário
A poesia de Almandrade faz-se, antes de tudo, daqueles temas essenciais da condição humana, tão preciosos para os homens do nosso tempo, distanciados da razão de existir. Uma perplexidade em constante estado de nascimento acorda, aos olhos do leitor, uma realidade múltipla e absurda. Ao lermos os textos do poeta baiano, deparamo-nos com a densidade do real e com todos os seus limites e frustrações: “cidade perplexa/ embalagem hostil/ inútil divertimento”. O eu lírico dos poemas de Almandrade gasta-se nas arestas do mundo, rasga-se nos ângulos dessa realidade limitada, em um viver de raríssimas possibilidades de salvação ou transcendência (encontradas, como veremos a seguir, apenas no erotismo e na epifania da palavra lírica): “O andarilho inocente/ repete o caminho/ sem encontrar/ uma saída”. Esse esgotamento das possibilidades do real lembra-nos dos angustiosos labirintos Kafkianos, em que todas as direções nos encaminham, na verdade, para lugar nenhum. O mesmo clima de abafamento, de aprisionamento, entrevisto na ficção de Kafka, pode ser percebido nesses poemas de agudeza existencial. Drummondiano, sem deixar de possuir uma voz própria e peculiar, Almandrade recria, portanto, aquele clima claustrofóbico da poesia do autor itabirano, tão bem expresso pela persona inventada por Drummond, ou seja, o seu famoso José.
Essa é uma poesia que, antes de instaurar a segurança, desalenta-nos com as incertezas, com as dúvidas. Já na antiguidade, Sócrates alardeava a importância do questionamento, em detrimento das respostas. Pois bem, na poesia de Almandrade, temos a mesma sede de indagação, a mesma escavação feita por perguntas que não se findam, que instauram uma perpétua pesquisa do viver: Pensar é/ abrir portas,/ migrar/ para o desconhecido”. Em versos sucintos, verdadeiras farpas de auto-iluminação, o poeta de Malabarismos de Pedras amplia a potência do signo poético, como se a palavra funcionasse como um verdadeiro golpe a acordar o leitor de sua letargia, de seu sedimentado hábito de simplesmente estar no mundo: “Dormir,/ pode ser uma covardia/ diante das circunstâncias/ e suas incertezas”. Essa vigília em perene estado de exacerbação, funciona, portanto, como um farol a desmascarar as farsas dessa nossa realidade tão estigmatizada pela mídia e pela ideologia do consumo. Ao lermos Almandrade, sublinhamos, em nosso âmago, a força da consciência e a sua capacidade de detonar as verdades estereotipadas de nossa era pós-moderna.
Essa mesma consciência, vibrante, intensa, também vasculha a própria fuga do tempo, e a revela, sem nos poupar e sem nos iludir: “a vida quando vazia/ é um acúmulo de rugas”. Somos seres irremediavelmente efêmeros e passageiros e, diante dessa situação existencial, resta-nos somente a epifania da própria poesia, teia a nos interligar a um eterno agora (apenas retido pela memória), momento pulsante, orgiástico e, por isso, intensamente vivo mesmo em face da dissolução do existir: “as coisas retidas na memória/ acariciam a eternidade”. É dessa revelação da palavra, feita de som e fúria, que nasce um doce erotismo, um terno desvelo pelo corpo feminino: “Em silêncio/ a intimidade feminina/ acende o mistério/ que faz lembrar/ o aroma dos devaneios/ que transporta/ o fim da tarde”. Dessa forma, diante das amarras impostas pelo destino e pela realidade, nasce a iluminação do desejo, energia a latejar o corpo, a incendiar a graça de ser: “Nem mesmo/ a musicalidade dos pelos/ é maior que o apelo/ da cicatriz do nascimento”.
A poesia de Almandrade, portanto, recorda-nos o mito de Sísifo. O homem contemporâneo, acossado, muitas vezes, pelo vazio e pela alienação, típicos em um tempo de consumismo desenfreado, está condenado a rolar, em infinitas vezes, uma pedra ao topo de um monte. Todavia, resta a esse homem, ao descer, de mãos vazias, a mesma colina, a visão pródiga de um mar, feito de intenso azul, prazer e glória a saciar-nos com o milagre da poesia: “Agora é dia, o sol queima a letra”.
*Nasceu em Belo Horizonte. É mestre em literatura brasileira, poeta e professor universitário
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