quarta-feira, outubro 31, 2007

Cristais que iluminam - Ricardo Aní­sio

Cristais que iluminam
Terça, 23 de Outubro de 2007 07h30
Antes que a minha vigilante amiga Dolores me atire facas de indignação, devo avisar-lhes que cá não sou crítico literário, e nem candidato a. Sou um mediano poeta bissexto que tenta construir seu caminho, e que com o mais recente dos meus livros, o Canção do Fogo (Edições Bagaço, Recife, 2007), consegui fios de respeitabilidade tais como as palavras da professora Aglaê Fernandes, que se disse surpresa e encantada com o nível dos meus poemas, e com os generosos elogios do escritor pernambucano Luiz Berto, autor do impagável Romance da Besta Fubana e de Memorial do Novo Mundo entre outras obras geniais. Vou maturando, sem pressa, consciente do brejo que tenho pela frente.
Sendo um poeta mediano e não sendo crítico literário, me sinto a vontade para escrever sobre o livro O Cristal dos Verões (Ed. Escrituras, São Paulo, 2007) do paraibano Sérgio de Castro Pinto. Para mim, juntamente com W. J. Solha e Otávio Sitônio Pinto, o que há de melhor na poética paraibana, nordestina e nacional, da contemporaneidade, e além dela, quiçá.
Sérgio é um poetastro. E sua obra não exprime a arrogância academicista embora seja ele um artista imorredouro no engenho da eterificação. Ao ler alguns de seus poemas para a dileta Dolores, de minguado conhecimento literário, ela se extasiou. "A cor que não explode/ barril de pólvora mansa/ apesar do pavio da tromba" são versos de O Elefante, originalmente publicado no Zôo Imaginário e agora incluído na antologia de poemas escolhidos O Cristal dos Verões.
Quando lemos Sérgio de Castro Pinto poesia parece água fluída de córrego manso, desmitificando a imagem sôfrega dos sorumbáticos vates em seus alforjes de vaidade e arrogância. "A vida é dose!/ de gole em gole/ - com um olho cheio de rum/ e outro sem rumo -, / o mundo é um porre!" decreta com a propriedade de quem usurpou da vida noites etílicas das quais geralmente os poetas tiram sua carta de alforria, somente para lembrar um outro poema deste esplêndido esmerilhador de versos.
Ao escrever Sobre o Medo este inspiradíssimo Castro Pinto me deixa pasmo, descobrindo nele uma grandiloqüência só encontrada em figuras como Garcia Lorca e Manuel Bandeira: "O medo se aloja na medula/ como um cubo de gelo/ O medo se infiltra no tinteiro e o congela/ O medo se instala na palavra e a enregela/ Com o medo aprendi o ofício de armazenar as palavras como num frigorífico/ Com o medo conservo: dez mil palavrasº abaixo de zero". Perfeição existe? Se existe, aqui me curvo e bato cabeça ao amigo Sérgio, por ter ele atingido-a.
Na leitura de O Cristal dos Verões eu condenso a sensação do embrionário poeta que sou com a certeza dos prazeres que leituras deste nível me concedem. Desprovido da envergadura que leva a obra de Sérgio de Castro Pinto a sacralização, me orgulho e me envaideço por privar de sua amizade. Não é todo dia que uma semente consegue ir lá no alto e tocar a copa d'árvore frondosa; e é assim que sinto.
Bate-me a sensação nobre da fluidez que minha poesia não tem e que na de Sérgio sobra. Reconhecendo-me um aprendiz que se alegra na constatação da maestria referencial que me abastece através d'O Cristal dos Verões deixo de público a minha inscrição entre os idólatras da poética 'sergiodecastropintiana' e recomendo a todos a leitura urgente, tanto de obras como Zôo Imaginário como da antológica seleção de O Cristão dos Verões. Em ambos há, além da obra completa, acabada, irretocável, a certeza de que com eles os jovens poderão tomar aulas práticas.
Se não pela riqueza literária, certamente pela maneira de fazer poesia elevadíssima dando-nos a impressão de que é um exercício dos mais fáceis. "A andorinha anda breve e mínima/ Tão confusa e cheia de ser fusa/ ou semicolcheia/ Na pauta dos fios de eletricidade,/ que já chilreia em alta voltagem". Descritiva, como nestes versos dedicados à sua filha caçula Maria Carolina, a poesia no embebe a alma de cantos de pássaros, de água cristalina, de pleno verão. Sutilmente o poeta parece escapar da maldição das trevas, onde um dia Poe e Yeats pretenderam nos enclausurar com a inadimplência da alegria.
"Da máquina o homem revela a memória/ e o que estava dentro revela-se ao lado de fora". Não gosto de eleger o melhor poeta, o melhor compositor ou o melhor artista plástico; mas me reservo o direito de definir os quais prefiro. E certamente prefiro o Sérgio de Domicílio em Trânsito (que somente o título genial já me marcaria) e o Solha de Trigal com Corvos, pela densidade épica com que transgrediu a economia com uma profusão de imagens literárias deslumbrantes e instigadoras.
É bom que as escolas públicas comecem a dizer a seus alunos que a literatura paraibana não vive apenas do passado, de Augusto dos Anjos e de José Lins do Rego, mas vive de Sérgio, de Solha, de Marília Arnaud, de Mercedes Cavalcanti, de Valéria Resende, de Ronaldo Monte e de Otávio Sitônio Pinto entre tantos que aqui não cabem.
FONTE: Jornal O Norte - João Pessoa,PB,Brazil

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