sexta-feira, julho 20, 2007

A conferência das baratas por Lucius de Mello


15/7/2007 12:55:00

A conferência das baratas
Por Lucius de Mello

“A família é a instituição mais
misteriosa do universo.
E nesse lar, ao invés do astronauta
eu prefiro ser a mosca na parede.”
Amós Oz


Encontrar insetos em praças públicas não é nada difícil no Brasil. Mas o que o público da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – encontrou este ano na praça da Matriz, na cidade do litoral fluminense, não era qualquer um. Era a mais famosa barata do mundo. A que fez García Márquez decidir que seria escritor na vida e escrever Cem Anos de Solidão. Fantástica. Imensa. Enigmática. Estava lá enrolada numa coberta deitada sobre uma cama. Uma barata no divã? Talvez fosse mais um freudiano analista de papel machê generoso com os curiosos que paravam.
Kafka não foi tema de nenhuma mesa diretamente. Mas aquela instalação do conto Metamorfose não ficou ali exposta dia e noite por acaso. Era um espelho. Éramos todos ali Gregor Samsa. Baratas professoras, médicas; baratas advogados, publicitários, empresários; baratas jornalistas, estudantes; baratas socialites e aposentadas; baratas escritoras, duas delas Prêmio Nobel; baratas anônimas; nordestinas, cariocas, paulistanas; baratas africanas e alemãs; baratas da favela e de Nova York; baratas indianas e portuguesas; palestinas e israelenses; baratas recatadas e pornográficas; beijadoras do asfalto; sem famílias e senhoras dos afogados; baratas inspiradoras de Nelson Rodrigues (homenageado da FLIP 2007); baratas censuradas, já não mais fãs de Roberto Carlos.
Pernas, pernas, pernas, pernas e pernas e mais pernas... Quantas pernas se deliciaram para lá e para cá, cruzaram a cidade e circularam de um lado para o outro sobre as ruas calçadas com pedras, saborosamente chamadas de pé-de-moleque da histórica Paraty. Dia e noite a barataiada fez a festa! Quando não estavam nas tendas atentas às palestras e discussões, passeavam de escuna, de carruagem; andavam pela praia, lotavam os restaurantes, bares e padarias.
“Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa uma rua”, já dizia Nelson Rodrigues. E para proteger as colegas, as baratas policiais trabalharam dobrado. As fardadas também eram muitas. De repente um chinelo violento podia ser disparado contra uma das participantes, não é mesmo? Infelizmente, a violência, os homicídios, as chacinas e os atentados terroristas já chocam tanto como dar chineladas em baratas.


Falou-se da guerra, de Osama Bin Laden, de Bush, de Blair, do fim do mundo. E acredito que foi em busca da nossa quase perdida humanidade que nós, flipadores, réplicas de Gregor Samsa, fomos a Paraty. De carro, ônibus, helicóptero... Andando ou voando, assim como fazem os insetos de asas carameladas quando saem para caçar comida, lá fomos nós à FLIP.
Como poucas e raras baratas leitoras fomos nos alimentar de idéias, ideais, livros e palavras que nos tornassem mais humanas e nos devolvessem pelo menos um pouco da nossa saudosa capacidade de nos indignar com a banalização da vida, principalmente. E lá estava Kafka na praça para nos lembrar: A metamorfose é possível.
Ainda é possível. E a literatura é o caminho. Supera a ciência e a filosofia no entendimento de verdades cada vez mais provisórias. Por isso, tornem-se baratas viciadas em poesia. Subam pelas paredes, passem pelas frestas das portas e das janelas, invadam fogões e geladeiras se for preciso, para dar uma única lambida, se for o caso, num sorvete de poesia, em doces e bebidas de poesia, balas, bombons, num bolo de poesia...
E para todas nós, baratas que ainda acreditamos na metamorfose, a FLIP 2007 foi um banquete e tanto. Principalmente o que foi servido à mesa de Amós Oz e Nadine Gordimer. Serviram paz e literatura. E teve duas cerejas no bolo da sobremesa afro-casher:

A primeira cereja:
“Quando você é escritor é uma bênção ser ingênuo, porque é como ver as coisas pela primeira vez. Uma pessoa ingênua é mais rica; ela vê mais, aproveita mais. Quem ganha o tempo todo esquece de viver.” ( Amós Oz)

A segunda cereja:
“Quando eu era menino eu queria ser bombeiro”, disse Amós Oz a Nadine.
“Mas quando você escreve você é um bombeiro”, respondeu a escritora africana.

E assim de melado em melado poético, voltaremos a nossa forma original. E quem sabe num futuro próximo não vamos mais nos surpreender ao ouvir no rádio, na tevê ou ler nos jornais ou numa obra literária:
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, uma barata deu por si na cama transformada num grande homem...



Lucius de Mello é escritor, jornalista e pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo. Finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. E-mail: luciusdemello@uol.com.br



Fonte: CRONÓPIOS - Literatura e Arte no Plural+TV CRONÓPIOS


http://www.cronopios.com.br/

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