Albano Mendes de Matos
Oeiras - Portugal
A BRUXA
Todas as Mónicas são bruxas. Assim diziam no povoado serrano. Voam com uma vassoura entre as pernas, em malévolas viagens de gozo, por cima de toda a silva, entre névoas e ramagens, no ondular das encostas. Algumas mudam-se para galinhas, na devoção dos segredos, na maldição das sortes. E sacodem as asas, despejando os males à porta dos pacientes, por encomenda. São as bruxas más. São as bruxas das encruzilhadas nocturnas, que têm encontros com Lucifer, ao cair da Meia-Noite, e esvoaçam silenciosas sobre os telhados, leves como folhas secas, tocadas pela ventania, nos segredos da sua trans-figuração sobrenatural. Galinha a cantar fora do tempo ou a vaguear desnorteada, com tremuras de asa, pode ser encarnação de bruxa. Desta sorte, as mentalidades cimentadas na religiosidade camponesa e na magia. Uma visão do mundo, no sentir da ruralidade embebida numa sensação de instabilidade e de incerteza. Nas mãos das entidades protectoras - clérigos, exorcistas, bruxas, mulheres de virtude e santos advogados - estava um sentimento de segurança, um ancoradouro para a vida.
Tudo na vida tem o seu contrário, como a alegria tem a sua tristeza e o riso tem o choro. Assim, algumas bruxas não são maléficas, mas sempre temidas. Mostram-se com a sua divinatória sabedoria. Curam males de Lua, tiram maus-olhados, desentorpeçam crianças e saram feitiços de amor. Para pequenos males, as mulheres tinham sempre na ponta da língua uma oração para esconjuros, um prato com água e pingos de azeite para certificação de bruxedos. Em casos de maior turvação, recorriam a rezas e gestos fortes, ou a pessoas de virtude, para recitação das Doze palavras ditas e retornadas[1], infalíveis contra os males de inveja e as malquerenças.
A malha do centeio estava aprazada para o dia seguinte. Na casa do Tio Alfredo, o Tormentas de alcunha, por clamar que a vida era uma grande tormenta, numa barulhenta azáfama, preparavam-se as papas de carolo branco, esfolava-se a cabra para o guisado, cozinhava-se arroz-doce, com leite da cabra, decorado com canela, desenhando flores, corações e outros rabiscos, que a fornada do pão já tinha sido cozida na antevéspera. Para a desjejua na manhã da malha, coava-se e fervia-se leite. Apartavam-se os melhores chouriços, conservados em azeite, e os nacos de presunto mais largos e avermelhados, atados em sacos de pano branco, para a merenda da tarde, que as varejeiras rondavam procurando frescura para os ovos.
Que a malha era uma festa grande! Dava o pão para o ano!
A aldeia moldava-se numa concha natural, na meia encosta da serra. Estendida como um sáurio, na modorra do tempo. Os penedos em crista, recortados nas alturas, cerravam-lhe os horizontes, excepto os do Sul, sempre abertos para o Campo que se estende por largos espaços até se esbater no infinito. Os ares centravam-se num pedaço de céu, incendiado pelas chispas do Sol, sombreado pela Lua Nova ou clareado pelas bochechas da Lua Plena. Simulacros de claridade eram as quadraturas do Minguante e do Crescente. As Luas e a crença na operância mística ou mágica no deambular empírico e sinuoso das gentes, na germinação das sementes e no eclodir dos pintainhos bicando o calcário ovóide protector da sua gestação. A capação, castração ou esterilização mecânica dos suínos acontecia em Lua Nova, mas nunca em dia de mudança lunar, que os golpes não saravam. A gaita de tubos metálicos, com dimensões diferentes, que, ajustada aos lábios e soprada, produzia diversos tons, anunciava o capador de porcos, sabedor da operação necessária e propícia para a engorda e para o bom sabor das carnes. Era uma gaita semelhante à dos amoladores galegos, que desciam da Galiza, para ganharem alguns escudos, aguçando tesouras e facas, de rua em rua, de povoado em povoado. Estes trabalhadores ambulantes sazonais faziam parte do calendário meteorológico: anunciavam chuva. Tempo de amoladores, tempo de chuva. Acrescidas eram as dificuldades no capar das fêmeas porcinas, devido à manipulação interna. A borra de azeite com enxofre sobre os golpes e a oferta ao Santo António eram, respectivamente, os meios da racionalidade curativa e da prece na crença religiosa. Ao cuidado das bruxas ou mulheres de virtude ficavam as rezas e segredo dos rituais mágicos. Gestos e benzeduras com as mãos, abertas ou de dedo em riste, e facas afiadas para talhar a zerpela[2] ou cortar o quebranto. Na transplantação do cebolo, as raízes deviam ver a Lua. A terra a deixar de fora um pouco da cabeleira, para que o luar a abençoasse. As cebolas sairiam largas e saborosas. Operação só feita nos quartos lunares ou em Lua Cheia. Luar pleno era também propício para os lobisomens peregrinarem a sua devoção nas andanças noctívagas. Que eles habitavam na crença de longos séculos.
Três rapazes preparavam-se para a malha: o Tó Tormentinha, o Alberto Naifas e o Quim Nanho[3]. Assentavam-lhes bem, as alcunhas. Raras pessoas da aldeia escapavam à nomeação por alcunhas, que se lhes colavam ao corpo e à alma para toda a vida. O Tor-mentinha, filho do Tormenta, O Naifas, por, em garoto, andar sempre com a naifa em punho, para o desse e viesse, o Nanho, por ser a palavra que mais lhe saía da boca, nas mangações com os outros.
Na taberna do velho Simão, alumiada com a chama mal cheirosa e pálida de um gasómetro das minas do volfrâmio, prateleiras e balcão enegrecidos pelo tempo, compraram chouriças e vinho. Que a noitada iria ser longa. E sem pândega não era noite. Ali ficaram a fazer tempo, beberricando, que a madrugada iriam terminá-la, por combinação, na corte do Tio Alfredo Tormentas, junto da eira, na fazenda do Penedo. A eira, para estender os cavalos[4], já varrida e barrada, logo ao lado. O vendedeiro, Tio Simão, dormitava entre duas sacudidelas para mais um copo de três[5], mal medido.
- Eh rapazes! Lembrei-me, agora, de uma coisa! – disse o Alberto Naifas.
- O quê? – resmungou Tormentinha.
- De quando palmilhávamos o centeio, na cata de lenticão; grão aqui, grão ali, para encher as caixas de palitos[6], que eram a medida para o farrapeiro.
- Lenticão para as bombas de São João! Bons tempos! – lembrou Quim Nanho.
- É que, ontem, vi mãos cheias dele, nas faixas do pão que está para malhar – res-pondeu Naifas.
- Lembro-me bem, de garoto. Chegava a encher mais de vinte caixas, pequenas e grandes, por dia! – exclamou o Nanho, apontando o dedo para o ar.
- E eram só a dois tostões[7]! - comentou Tormentinha.
- As pequenas! Que as grandes eram o dobro, um cruzado ou quatro tostões[8] - acrescentou Nanho.
- Mas tínhamos bombas de fartar, para o São João! – frisou Tormentinha.
- Diziam que eram para fazer pólvora, para as guerras! – lembrou o Naifas.
- Pr’ó que era, não sei!... Que foi proibido vender, isso foi! – disse Nanho.
- Lembra-me muito esse tempo, em que andávamos na vadiagem o dia todo! – lembrou Naifas.
- As horas por nossa conta! Era bom, era! – rematou o Tormentinha.
Nas encostas, em leiras abertas ou nas taliscas, entre os penedos, o centeio vingava, mais viçoso em anos de nevão. Desbastado pelas cabras, rebentava mais forte, mais espigado. As humidades das invernias e a cresta dos calores de Maio propiciavam o aparecimento do lenticão nas espigas, esporão do centeio, a contaminação dos grãos por um fungo tóxico causador de doenças e de alucinações nas pessoas. Na malha, o lenticão acompanhava o grão e também era moído nas azenhas. Perturbados mentais, caminhando, de noite, pelas veredas, problemas neurológicos, ataque epilépticos: fogo sagrado ou doença da Santo António e doidinhos, em muitas terras, alimentados com centeio contaminado pelo lenticão. Homens tolhidos pela Má Hora em transformações licantrópicas. Lobisomens cumprindo o seu fado, bufando e gemendo, alucinados pelos vendavais da sorte, na magia das noites de horas nefastas.
O sino saimão[9] apertado, em punho, na mão esquerda. A dextra livre para os gestos de protecção e de afastamento, que muitas coisas más andam pelas noites, em horas pró-prias, a atazanar os desprevenidos e os inocentes. E rezas na memória contra os encontros com o Diabo. Nem de noite, nem de dia, nem à hora do Meio-Dia. E as bênçãos pre-ventivas, cruz em monte e em fonte, na convicção das mentalidades.
A paz social da aldeia controlada pelo esmero da crença e da religiosidade, numa multitude de comportamentos, recriados em cada geração, para a reprodução social dos costumes. As bruxas, as almas penadas e os lobisomens como entidades sobrenaturais embebidas na criação dos medos, para a ordenação da norma social.
Para dar sustança com o vinho, o Tio Simão assou um naco de soventre, que já começava a tomar do sal, nas brasas da lareira, e levou-o aos três companheiros, Tormen-tinha, Nanho e Naifas, que eles deixavam bem o lucro do taberneiro no copo, não emborcando todo o vinho entre as rodadas. No fundo, lá ficava o ganho do taberneiro. O Quim Nanho, o mais manhoso deles, ovelha ronhosa lhe chamavam na escola, pegou no toucinho a jorrar gordura e chegou-o à luz pálida do gasómetro. Olhou de um lado e de outro e gritou:
- Não gosto tetas! Ainda se as chupasse! Mas, isso, outro galo cantaria!
- Não te armes em esperto, porque até te passam pelo gasganete coisas piores e não cantas – gracejou o Naifas, preparando-se para abocanhar um pedaço do assado.
- Eu nem o courato lhe tiro! Passando da goela, tudo é igual, tudo cai no mesmo – comentou Tormentinha.
- Comei, porque amanhã tendes que puxar pelo mongal[10], isso é que é uma certeza! – disse o Tio Simão.
- Dessas contas já nós sabemos, Tio Simão! Meta-se lá na sua vidinha e não nos apareça com mais mamas de porca – respondeu Nanho, empertigado.
- Ou de porco, tu sabes lá!... – comentou o velho taberneiro, lançando uma risada rouca de anos.
Nas proximidades da Meia-Noite, os três da vida airada prepararam-se para sair da taberna do Tio Simão e treparem pela encosta, com destino ao Penedo. O Tio Simão tinha encostado a folha da porta, porque a legalidade da abertura estava nas dez da noite. Depois, sem fregueses na mira de um copo, encostou-se ao balcão. Que as pernas já adornavam e o cansaço do dia a dia pesava. Daí a bem não, a cabeça tocou o tampo surrado pelos descuidos do vinho. Num instante, dormitou. E logo a sair-lhe da boca um sopro, acompanhado por ligeiro ruído gutural, que o Tormentinha acompanhava com um assobio arrastado, queixo elevado, terminando num sorriso silencioso.
A Lua Cheia pairava um pouco acima do rendilhado dos cumes. O luar clareava a concha da serra. Sem aragem, os vultos das árvores estavam imóveis. Estática parecia a Natureza. O silêncio dos vales apenas perturbado pelo cantar dos regatos caindo de pedra em pedra. De vez em quando, a coruja gritava no pinheiro da capela. Um som nocturno que incomodava os ouvidos mais sensíveis. A coruja era um animal noctívago, que anunciava desgraças. As mortes incluídas. Especialmente as mulheres abominavam estas aves rapinadoras. Diziam que até roubavam o azeite dos lampadários do Altar, se tivessem ensejo de lá chegar. Na penumbra do Altar, elas preferiam as borboletas que a luz atraía. Canta a coruja…, mau agouro. Notícia grave estará para chegar. As mulheres tinham a sua sabedoria. Conhecimento empírico, conhecimento virtual positivo. Pensamento mágico na classificação das atitudes.
A lista esbranquiçada do caminho contornava muros e regueiras. Serpenteava entre divisórias e cômoros de propriedades, amoldava-se a lombas e contornava penedos. Batido por pessoas, animais e, em certos locais, por carros de bois, era fonte de poeiras, levantadas, em tempos de calmaria, pelos ventos serranos, ou torrente de lamas nas primeiras chuvas. Tormentinha, Nanho e Naifas subiam cadenciando os passos, no ritmo do anda-mento sem pressas. Agora, calados na passagem pelo silêncio do cemitério. O respeito e o medo da morte na enculturação primordial das crianças. Respeitos humanos pelos antepassados.
Ultrapassados momentos de silêncio tumular, o Naifas confessou o maior susto da sua vida. Vinha da Barroca do Pereiro, ao lusco-fusco, e atalhou pela vereda do cemitério, que era mais rápido, para chegar à casa da avó, onde ia dormir, porque o avô tinha ido de vigia para o batatal, que tinha nas Tapaditas, para afugentar os javalis, que tudo fossavam, pondo as raízes ao Sol. Quando se aproximava do muro, teve um baque no coração. Sentiu arrepios de morte. E frios a subirem pela espinha. Era um vulto de pessoa a levantar-se sobre o muro do cemitério, no local onde é mais baixo, porque a terra se levanta. Primeiro a cabeça, depois os ombros… Foi o que viu. Tremenda foi a corrida, os calcanhares a baterem no rabo, até à capela, onde parou em tremedouros, sem fala, só arfando. A contenção urinária quase em explosão. Naifas jurou que não mais passaria pelo cemitério para lá do Sol se pôr. São assim os medos. O vulto a pular o muro do cemitério era da Tia Rosa Benedita, que ceifava a erva, no local onde não havia covais, para dar comida aos coelhos. Naquele dia, o portão estava fechado. Isto segredou a Tia Rosária dos padres, que cuidava dos altares e da sabedoria catequética, examinadora da criançada. A Tia Rosária guardava, em arcas de castanho, as opas brancas das comunhões, primeiras e solenes, e as faixas das Cruzadas, com as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo, para rapazes e raparigas ostentarem nas procissões festivas, como iniciação de defensores da Fé. Dera-se à capela e aos padres, porque o seu homem, tido como pouco crente e julgado lobisomem, morrera fulminado por uma faísca, quando se abrigava de uma trovoada, na Penha Alta. Desde aí, a Tia Rosária mais passou a acreditar em castigos dos Céus.
Os silêncios foram quebrados pelos latires dos cães, de fazenda em fazenda. Uma aragem ligeira fez estremecer os fios das giestas e as folhagens das carvalhiças, com ruídos intermitentes, prolongados. O caminho corria agora na sombra de pinheiros mansos, que bordejavam o cômoro. De noite, sentem-se mais os ruídos. A terra parece dormir. Os silêncios mais profundos.
Nanho levantou os braços, com sinal de paragem. Susteve-se um pouco e balbuciou:
- Devem andar lobos por perto, que os cabelos levantaram-se-me. Cabelo eriçado é sinal deles!
- Com os cães a ladrar, eles não se atrevem. Tu estás é como os efeitos das mamas da porca no toutiço. Ou és um cagarola de meia tigela! – respondeu-lhe Tormentinha.
- Contou o meu avô, que é um homem bom conhecedor da serra, que os lobos comiam homens, quando os apanhavam desprevenidos; de um pobre, que cirandava pelas terras na pedincha, só encontraram os pés dentro dos tamancos – disse Nanho.
- Que as bruxas e os lobisomens têm lapas, na serra, onde se escondem, sempre se disse – afiançou Naifas.
Na oficina do Ti Caetano sapateiro é que todas as coisas são ditas e contadas. Enquanto Ti Caetano e os filhos palmilham sapatos, cosem viras nas botas, adelgaçam almas e acertam gáspeas, há sempre assistência a saber de notícias e a ouvir contar histórias, inventadas ou reais, que os mais velhos vão desfiando. Dizia-se que, na Lapa Escura, estava encantado um rei mouro, com um capote de ouro, que tinha pactos com o Diabo e apanhava as raparigas que passassem perto; na Toca do Lobo, o Diabo se encontrava com as bruxas, de noite, e de lá iam para as clareiras dos soutos, onde dançavam até partirem para os afazeres maléficos. Havia quem presenciasse essas danças diabólicas. O pai do Zé da Pardanta contava que um dia em que guardava o milho, a secar na Laje dos Amieiros, aí pelo uma da noite, uma coisa, que lhe pareceu um cavalo pequeno ou um cão enorme, correu para a laje, aos pulos de mais de dois metros de alto, dando pequenos urros. Sentado numa pedra, quando ouviu o alvoroço que fazia o quer que era, levantou-se e a coisa desviou-se e desapareceu pulando pelos lameiros. Atormentado, ouvia uma voz, ao longe, que o chamava: “Ó Zé!... Ó Zé!..” Parecia-lha a voz da avó, que tinha sido enterrada havia uns quinze dias. Lobisomem devia ser. Pela manhã ainda lá estava o rasto. A Tia Zefa da Ribeira, por alturas do Natal, abriu a arca para tirar o xaile de merino[11], que usava nas festas, e encon-trou-o traçado com pequenos golpes, como se fossem feitos com uma navalha. Diziam que uma mulher lhe queria mal e pagou a uma bruxa que, de noite, lhe entrou em casa e fez a diabrura no xaile. Uma bruxa juntou-se com o Diabo, para as orgias da noite, no sobrado da Marianinha do Serrado, antes de partirem para os malefícios nocturnos. Solteira, Maria-ninha queria ser freira mas, sentindo-se mal na vida conventual, voltou para casa. Morta a mãe viúva, ficou só. Como castigo, quase todas as noites o Diabo e a bruxa a atormentavam com ruídos, passos e gemidos. Afoita com candeia na mão subia a escada do sobrado e nada via ou sentia. Mas, logo depois, continuavam os sinais diabólicos. Começou a ema-grecer tanto que até o Sol já se via pelas orelhas. Solicitou a alguns padres que fossem à sua casa rebentar com o diabo e com a bruxa, mas não teve qualquer aceitação. Só passados anos, o benzilhão[12] do Meimão, com poderes fortes, lhe expulsou de casa e da ideia os entes maléficos.
Passadas as derradeiras curvas, nas irregularidades da encosta, surgiu a Fazenda do Penedo. A Lua estava a chegar ao pino. Banhava a terra com uma claridade agora mais aberta, mais limpa. A eira, as medas do pão a malhar, os nagalhos na presa, a amolecerem, para atarem os molhos da palha. O garrafão no centro do piso térreo da corte. Com uma navalha de enxertar e mão certeira, Naifas golpeava as chouriças em rodelas estreitas. Num repente, agita a mão, como quem dá uma facada, e diz:
- É o que eu faria às bruxas, se as enxergasse pela frente!
Uma tripeça a servir de mesa. Os nacos de chouriça sobre um pedaço de papel pardo, que já servira de invólucro a outros produtos. Formando triângulo, os três da vida airada sentados em pequenos bancos. O garrafão a passar de mão em mão ou de boca em boca, no gorgolejar do vinho, como bocal de clarim ajustado aos beiços, que lábios é palavra de ricos. Comeram e beberam até ao limite da carraspana, terminando cada golada com um ah... de satisfação. Esquecidos dos lobisomens, dos lobos, das bruxas, do soventre com mamas, Tormentinha, Naifas e Nanho refastelaram-se na palha que espalharam a um canto da corte. Mantas de ourelos serviam de lençol. Com um ou outro arroto aliviavam os apertos do estômago. Os ares sossegaram. As mentes adormeceram.
- Que as há… há! Que as há…há!
Tormentinha e Naifas acordaram estremunhados. Tormentinha riscou um palito e chegou-o à torcida do candeeiro de lata dependurado num buraco da parede. Esfregaram os olhos e viram, de calças na mão, meio enfiadas nas pernas, o Naifas que gritava, gesti-culando:
- Que as há… há! Que as há… há!
- Há o quê? – perguntou Nanho.
- As bruxas!... As bruxas!...
- Estás tonto ou ainda bêbedo!? Ou deste em palerma!? – gritou Tormentinha.
- Senti revoltas na barriga e fui-me abaixar, lá fora, de encosto a uma pedra. Era manhã alta e ainda ia pensando nas bruxas. Abaixei-me e, ao levantar os olhos, dei com um vulto de mulher, agachada, uns poucos de metros à frente, junto do cotovelo do muro. Fixei bem a vista e era uma mulher. Pareceu-me que tinha um pano pela cabeça e não se mexia. Sentada sobre os calcanhares, os joelhos avultavam na saia. Saltou-me logo à ideia que era uma bruxa, que terá vindo atrás de nós para alguma maldade. Ainda estive parado um pouquinho, mas logo corri para aqui – descreveu Naifas.
- Estás a mangar connosco, ou quê? – perguntou Nanho.
- Se não acreditais, vamos lá a ver! Até se me puseram arrepios na espinha! – res-pondeu Naifas.
- Medricas é o que tu és! – ajuntou Tormentinha.
- Vamos lá! – afirmou Nanho.
Os três formaram um triângulo para o ataque. À frente, em linha, Tormentinha com uma forquilha empunhada, e Nanho com um sacho ao alto, atrás e ao meio, Naifas com um fueiro, apontado para diante. Cautelosamente, foram avançando passo a passo, olhos bem abertos, que a claridade da Lua já era frouxa. Como num reconhecimento de guerra, abai-xaram-se, quase rastejando. Em volta, apenas o silêncio da madrugada. A um sinal de Naifas, pararam. Apenas os olhos rebuscando o terreno.
- Quem aí está, que venha! – afoitou-se Tormentinha, levantando-se.
Uma mulher, tremelicando, ergue-se com os braços levantados, a saia a rodar os tornozelos e uma cesta pendente do braço direito. Levantando a cabeça, com a voz enta-ramelada, berrou:
- Ó filhos da minha alma, sou gente de bem!... Que arremedo é o vosso?
Era a Tia Mónica da Torre, viúva, que andava de fazenda em fazenda a comprar ovos para ganhar alguma coisita, para ajudar no sustento dela e do filho surdo-mudo, que tinha em casa. Ia começar pelo Penedo. Enganara-se nas horas. Não tinha relógio. Agacha-ra-se no cotovelo do muro à espera da alvorada, para ir na busca da vida.
Os três da vida airada, rindo que nem uns perdidos, foram para as palhas aguardar o fim da madrugada.
Diziam que todas as Mónicas eram bruxas!
[1] Oração contra os bruxedos e outros males provocados por pessoas.
[2] Erisipela.
[3] Pequeno, insignificante.
[4] Paveias de palha com o grão dispostas, na eira, para serem batidas com o mangual.
[5] Três copos perfaziam um litro de vinho. Também um copo de vinho que custava três tostões ou trinta centavos ($30).
[6] Fósforos.
[7] Vinte centavos ($20).
[8] Quarenta centavos ($40).
[9] Selo de Salomão.
[10] Mangual.
[11] Feito de lã dos carneiros da raça merina.
[12] Que benze, exorcista.
Tudo na vida tem o seu contrário, como a alegria tem a sua tristeza e o riso tem o choro. Assim, algumas bruxas não são maléficas, mas sempre temidas. Mostram-se com a sua divinatória sabedoria. Curam males de Lua, tiram maus-olhados, desentorpeçam crianças e saram feitiços de amor. Para pequenos males, as mulheres tinham sempre na ponta da língua uma oração para esconjuros, um prato com água e pingos de azeite para certificação de bruxedos. Em casos de maior turvação, recorriam a rezas e gestos fortes, ou a pessoas de virtude, para recitação das Doze palavras ditas e retornadas[1], infalíveis contra os males de inveja e as malquerenças.
A malha do centeio estava aprazada para o dia seguinte. Na casa do Tio Alfredo, o Tormentas de alcunha, por clamar que a vida era uma grande tormenta, numa barulhenta azáfama, preparavam-se as papas de carolo branco, esfolava-se a cabra para o guisado, cozinhava-se arroz-doce, com leite da cabra, decorado com canela, desenhando flores, corações e outros rabiscos, que a fornada do pão já tinha sido cozida na antevéspera. Para a desjejua na manhã da malha, coava-se e fervia-se leite. Apartavam-se os melhores chouriços, conservados em azeite, e os nacos de presunto mais largos e avermelhados, atados em sacos de pano branco, para a merenda da tarde, que as varejeiras rondavam procurando frescura para os ovos.
Que a malha era uma festa grande! Dava o pão para o ano!
A aldeia moldava-se numa concha natural, na meia encosta da serra. Estendida como um sáurio, na modorra do tempo. Os penedos em crista, recortados nas alturas, cerravam-lhe os horizontes, excepto os do Sul, sempre abertos para o Campo que se estende por largos espaços até se esbater no infinito. Os ares centravam-se num pedaço de céu, incendiado pelas chispas do Sol, sombreado pela Lua Nova ou clareado pelas bochechas da Lua Plena. Simulacros de claridade eram as quadraturas do Minguante e do Crescente. As Luas e a crença na operância mística ou mágica no deambular empírico e sinuoso das gentes, na germinação das sementes e no eclodir dos pintainhos bicando o calcário ovóide protector da sua gestação. A capação, castração ou esterilização mecânica dos suínos acontecia em Lua Nova, mas nunca em dia de mudança lunar, que os golpes não saravam. A gaita de tubos metálicos, com dimensões diferentes, que, ajustada aos lábios e soprada, produzia diversos tons, anunciava o capador de porcos, sabedor da operação necessária e propícia para a engorda e para o bom sabor das carnes. Era uma gaita semelhante à dos amoladores galegos, que desciam da Galiza, para ganharem alguns escudos, aguçando tesouras e facas, de rua em rua, de povoado em povoado. Estes trabalhadores ambulantes sazonais faziam parte do calendário meteorológico: anunciavam chuva. Tempo de amoladores, tempo de chuva. Acrescidas eram as dificuldades no capar das fêmeas porcinas, devido à manipulação interna. A borra de azeite com enxofre sobre os golpes e a oferta ao Santo António eram, respectivamente, os meios da racionalidade curativa e da prece na crença religiosa. Ao cuidado das bruxas ou mulheres de virtude ficavam as rezas e segredo dos rituais mágicos. Gestos e benzeduras com as mãos, abertas ou de dedo em riste, e facas afiadas para talhar a zerpela[2] ou cortar o quebranto. Na transplantação do cebolo, as raízes deviam ver a Lua. A terra a deixar de fora um pouco da cabeleira, para que o luar a abençoasse. As cebolas sairiam largas e saborosas. Operação só feita nos quartos lunares ou em Lua Cheia. Luar pleno era também propício para os lobisomens peregrinarem a sua devoção nas andanças noctívagas. Que eles habitavam na crença de longos séculos.
Três rapazes preparavam-se para a malha: o Tó Tormentinha, o Alberto Naifas e o Quim Nanho[3]. Assentavam-lhes bem, as alcunhas. Raras pessoas da aldeia escapavam à nomeação por alcunhas, que se lhes colavam ao corpo e à alma para toda a vida. O Tor-mentinha, filho do Tormenta, O Naifas, por, em garoto, andar sempre com a naifa em punho, para o desse e viesse, o Nanho, por ser a palavra que mais lhe saía da boca, nas mangações com os outros.
Na taberna do velho Simão, alumiada com a chama mal cheirosa e pálida de um gasómetro das minas do volfrâmio, prateleiras e balcão enegrecidos pelo tempo, compraram chouriças e vinho. Que a noitada iria ser longa. E sem pândega não era noite. Ali ficaram a fazer tempo, beberricando, que a madrugada iriam terminá-la, por combinação, na corte do Tio Alfredo Tormentas, junto da eira, na fazenda do Penedo. A eira, para estender os cavalos[4], já varrida e barrada, logo ao lado. O vendedeiro, Tio Simão, dormitava entre duas sacudidelas para mais um copo de três[5], mal medido.
- Eh rapazes! Lembrei-me, agora, de uma coisa! – disse o Alberto Naifas.
- O quê? – resmungou Tormentinha.
- De quando palmilhávamos o centeio, na cata de lenticão; grão aqui, grão ali, para encher as caixas de palitos[6], que eram a medida para o farrapeiro.
- Lenticão para as bombas de São João! Bons tempos! – lembrou Quim Nanho.
- É que, ontem, vi mãos cheias dele, nas faixas do pão que está para malhar – res-pondeu Naifas.
- Lembro-me bem, de garoto. Chegava a encher mais de vinte caixas, pequenas e grandes, por dia! – exclamou o Nanho, apontando o dedo para o ar.
- E eram só a dois tostões[7]! - comentou Tormentinha.
- As pequenas! Que as grandes eram o dobro, um cruzado ou quatro tostões[8] - acrescentou Nanho.
- Mas tínhamos bombas de fartar, para o São João! – frisou Tormentinha.
- Diziam que eram para fazer pólvora, para as guerras! – lembrou o Naifas.
- Pr’ó que era, não sei!... Que foi proibido vender, isso foi! – disse Nanho.
- Lembra-me muito esse tempo, em que andávamos na vadiagem o dia todo! – lembrou Naifas.
- As horas por nossa conta! Era bom, era! – rematou o Tormentinha.
Nas encostas, em leiras abertas ou nas taliscas, entre os penedos, o centeio vingava, mais viçoso em anos de nevão. Desbastado pelas cabras, rebentava mais forte, mais espigado. As humidades das invernias e a cresta dos calores de Maio propiciavam o aparecimento do lenticão nas espigas, esporão do centeio, a contaminação dos grãos por um fungo tóxico causador de doenças e de alucinações nas pessoas. Na malha, o lenticão acompanhava o grão e também era moído nas azenhas. Perturbados mentais, caminhando, de noite, pelas veredas, problemas neurológicos, ataque epilépticos: fogo sagrado ou doença da Santo António e doidinhos, em muitas terras, alimentados com centeio contaminado pelo lenticão. Homens tolhidos pela Má Hora em transformações licantrópicas. Lobisomens cumprindo o seu fado, bufando e gemendo, alucinados pelos vendavais da sorte, na magia das noites de horas nefastas.
O sino saimão[9] apertado, em punho, na mão esquerda. A dextra livre para os gestos de protecção e de afastamento, que muitas coisas más andam pelas noites, em horas pró-prias, a atazanar os desprevenidos e os inocentes. E rezas na memória contra os encontros com o Diabo. Nem de noite, nem de dia, nem à hora do Meio-Dia. E as bênçãos pre-ventivas, cruz em monte e em fonte, na convicção das mentalidades.
A paz social da aldeia controlada pelo esmero da crença e da religiosidade, numa multitude de comportamentos, recriados em cada geração, para a reprodução social dos costumes. As bruxas, as almas penadas e os lobisomens como entidades sobrenaturais embebidas na criação dos medos, para a ordenação da norma social.
Para dar sustança com o vinho, o Tio Simão assou um naco de soventre, que já começava a tomar do sal, nas brasas da lareira, e levou-o aos três companheiros, Tormen-tinha, Nanho e Naifas, que eles deixavam bem o lucro do taberneiro no copo, não emborcando todo o vinho entre as rodadas. No fundo, lá ficava o ganho do taberneiro. O Quim Nanho, o mais manhoso deles, ovelha ronhosa lhe chamavam na escola, pegou no toucinho a jorrar gordura e chegou-o à luz pálida do gasómetro. Olhou de um lado e de outro e gritou:
- Não gosto tetas! Ainda se as chupasse! Mas, isso, outro galo cantaria!
- Não te armes em esperto, porque até te passam pelo gasganete coisas piores e não cantas – gracejou o Naifas, preparando-se para abocanhar um pedaço do assado.
- Eu nem o courato lhe tiro! Passando da goela, tudo é igual, tudo cai no mesmo – comentou Tormentinha.
- Comei, porque amanhã tendes que puxar pelo mongal[10], isso é que é uma certeza! – disse o Tio Simão.
- Dessas contas já nós sabemos, Tio Simão! Meta-se lá na sua vidinha e não nos apareça com mais mamas de porca – respondeu Nanho, empertigado.
- Ou de porco, tu sabes lá!... – comentou o velho taberneiro, lançando uma risada rouca de anos.
Nas proximidades da Meia-Noite, os três da vida airada prepararam-se para sair da taberna do Tio Simão e treparem pela encosta, com destino ao Penedo. O Tio Simão tinha encostado a folha da porta, porque a legalidade da abertura estava nas dez da noite. Depois, sem fregueses na mira de um copo, encostou-se ao balcão. Que as pernas já adornavam e o cansaço do dia a dia pesava. Daí a bem não, a cabeça tocou o tampo surrado pelos descuidos do vinho. Num instante, dormitou. E logo a sair-lhe da boca um sopro, acompanhado por ligeiro ruído gutural, que o Tormentinha acompanhava com um assobio arrastado, queixo elevado, terminando num sorriso silencioso.
A Lua Cheia pairava um pouco acima do rendilhado dos cumes. O luar clareava a concha da serra. Sem aragem, os vultos das árvores estavam imóveis. Estática parecia a Natureza. O silêncio dos vales apenas perturbado pelo cantar dos regatos caindo de pedra em pedra. De vez em quando, a coruja gritava no pinheiro da capela. Um som nocturno que incomodava os ouvidos mais sensíveis. A coruja era um animal noctívago, que anunciava desgraças. As mortes incluídas. Especialmente as mulheres abominavam estas aves rapinadoras. Diziam que até roubavam o azeite dos lampadários do Altar, se tivessem ensejo de lá chegar. Na penumbra do Altar, elas preferiam as borboletas que a luz atraía. Canta a coruja…, mau agouro. Notícia grave estará para chegar. As mulheres tinham a sua sabedoria. Conhecimento empírico, conhecimento virtual positivo. Pensamento mágico na classificação das atitudes.
A lista esbranquiçada do caminho contornava muros e regueiras. Serpenteava entre divisórias e cômoros de propriedades, amoldava-se a lombas e contornava penedos. Batido por pessoas, animais e, em certos locais, por carros de bois, era fonte de poeiras, levantadas, em tempos de calmaria, pelos ventos serranos, ou torrente de lamas nas primeiras chuvas. Tormentinha, Nanho e Naifas subiam cadenciando os passos, no ritmo do anda-mento sem pressas. Agora, calados na passagem pelo silêncio do cemitério. O respeito e o medo da morte na enculturação primordial das crianças. Respeitos humanos pelos antepassados.
Ultrapassados momentos de silêncio tumular, o Naifas confessou o maior susto da sua vida. Vinha da Barroca do Pereiro, ao lusco-fusco, e atalhou pela vereda do cemitério, que era mais rápido, para chegar à casa da avó, onde ia dormir, porque o avô tinha ido de vigia para o batatal, que tinha nas Tapaditas, para afugentar os javalis, que tudo fossavam, pondo as raízes ao Sol. Quando se aproximava do muro, teve um baque no coração. Sentiu arrepios de morte. E frios a subirem pela espinha. Era um vulto de pessoa a levantar-se sobre o muro do cemitério, no local onde é mais baixo, porque a terra se levanta. Primeiro a cabeça, depois os ombros… Foi o que viu. Tremenda foi a corrida, os calcanhares a baterem no rabo, até à capela, onde parou em tremedouros, sem fala, só arfando. A contenção urinária quase em explosão. Naifas jurou que não mais passaria pelo cemitério para lá do Sol se pôr. São assim os medos. O vulto a pular o muro do cemitério era da Tia Rosa Benedita, que ceifava a erva, no local onde não havia covais, para dar comida aos coelhos. Naquele dia, o portão estava fechado. Isto segredou a Tia Rosária dos padres, que cuidava dos altares e da sabedoria catequética, examinadora da criançada. A Tia Rosária guardava, em arcas de castanho, as opas brancas das comunhões, primeiras e solenes, e as faixas das Cruzadas, com as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo, para rapazes e raparigas ostentarem nas procissões festivas, como iniciação de defensores da Fé. Dera-se à capela e aos padres, porque o seu homem, tido como pouco crente e julgado lobisomem, morrera fulminado por uma faísca, quando se abrigava de uma trovoada, na Penha Alta. Desde aí, a Tia Rosária mais passou a acreditar em castigos dos Céus.
Os silêncios foram quebrados pelos latires dos cães, de fazenda em fazenda. Uma aragem ligeira fez estremecer os fios das giestas e as folhagens das carvalhiças, com ruídos intermitentes, prolongados. O caminho corria agora na sombra de pinheiros mansos, que bordejavam o cômoro. De noite, sentem-se mais os ruídos. A terra parece dormir. Os silêncios mais profundos.
Nanho levantou os braços, com sinal de paragem. Susteve-se um pouco e balbuciou:
- Devem andar lobos por perto, que os cabelos levantaram-se-me. Cabelo eriçado é sinal deles!
- Com os cães a ladrar, eles não se atrevem. Tu estás é como os efeitos das mamas da porca no toutiço. Ou és um cagarola de meia tigela! – respondeu-lhe Tormentinha.
- Contou o meu avô, que é um homem bom conhecedor da serra, que os lobos comiam homens, quando os apanhavam desprevenidos; de um pobre, que cirandava pelas terras na pedincha, só encontraram os pés dentro dos tamancos – disse Nanho.
- Que as bruxas e os lobisomens têm lapas, na serra, onde se escondem, sempre se disse – afiançou Naifas.
Na oficina do Ti Caetano sapateiro é que todas as coisas são ditas e contadas. Enquanto Ti Caetano e os filhos palmilham sapatos, cosem viras nas botas, adelgaçam almas e acertam gáspeas, há sempre assistência a saber de notícias e a ouvir contar histórias, inventadas ou reais, que os mais velhos vão desfiando. Dizia-se que, na Lapa Escura, estava encantado um rei mouro, com um capote de ouro, que tinha pactos com o Diabo e apanhava as raparigas que passassem perto; na Toca do Lobo, o Diabo se encontrava com as bruxas, de noite, e de lá iam para as clareiras dos soutos, onde dançavam até partirem para os afazeres maléficos. Havia quem presenciasse essas danças diabólicas. O pai do Zé da Pardanta contava que um dia em que guardava o milho, a secar na Laje dos Amieiros, aí pelo uma da noite, uma coisa, que lhe pareceu um cavalo pequeno ou um cão enorme, correu para a laje, aos pulos de mais de dois metros de alto, dando pequenos urros. Sentado numa pedra, quando ouviu o alvoroço que fazia o quer que era, levantou-se e a coisa desviou-se e desapareceu pulando pelos lameiros. Atormentado, ouvia uma voz, ao longe, que o chamava: “Ó Zé!... Ó Zé!..” Parecia-lha a voz da avó, que tinha sido enterrada havia uns quinze dias. Lobisomem devia ser. Pela manhã ainda lá estava o rasto. A Tia Zefa da Ribeira, por alturas do Natal, abriu a arca para tirar o xaile de merino[11], que usava nas festas, e encon-trou-o traçado com pequenos golpes, como se fossem feitos com uma navalha. Diziam que uma mulher lhe queria mal e pagou a uma bruxa que, de noite, lhe entrou em casa e fez a diabrura no xaile. Uma bruxa juntou-se com o Diabo, para as orgias da noite, no sobrado da Marianinha do Serrado, antes de partirem para os malefícios nocturnos. Solteira, Maria-ninha queria ser freira mas, sentindo-se mal na vida conventual, voltou para casa. Morta a mãe viúva, ficou só. Como castigo, quase todas as noites o Diabo e a bruxa a atormentavam com ruídos, passos e gemidos. Afoita com candeia na mão subia a escada do sobrado e nada via ou sentia. Mas, logo depois, continuavam os sinais diabólicos. Começou a ema-grecer tanto que até o Sol já se via pelas orelhas. Solicitou a alguns padres que fossem à sua casa rebentar com o diabo e com a bruxa, mas não teve qualquer aceitação. Só passados anos, o benzilhão[12] do Meimão, com poderes fortes, lhe expulsou de casa e da ideia os entes maléficos.
Passadas as derradeiras curvas, nas irregularidades da encosta, surgiu a Fazenda do Penedo. A Lua estava a chegar ao pino. Banhava a terra com uma claridade agora mais aberta, mais limpa. A eira, as medas do pão a malhar, os nagalhos na presa, a amolecerem, para atarem os molhos da palha. O garrafão no centro do piso térreo da corte. Com uma navalha de enxertar e mão certeira, Naifas golpeava as chouriças em rodelas estreitas. Num repente, agita a mão, como quem dá uma facada, e diz:
- É o que eu faria às bruxas, se as enxergasse pela frente!
Uma tripeça a servir de mesa. Os nacos de chouriça sobre um pedaço de papel pardo, que já servira de invólucro a outros produtos. Formando triângulo, os três da vida airada sentados em pequenos bancos. O garrafão a passar de mão em mão ou de boca em boca, no gorgolejar do vinho, como bocal de clarim ajustado aos beiços, que lábios é palavra de ricos. Comeram e beberam até ao limite da carraspana, terminando cada golada com um ah... de satisfação. Esquecidos dos lobisomens, dos lobos, das bruxas, do soventre com mamas, Tormentinha, Naifas e Nanho refastelaram-se na palha que espalharam a um canto da corte. Mantas de ourelos serviam de lençol. Com um ou outro arroto aliviavam os apertos do estômago. Os ares sossegaram. As mentes adormeceram.
- Que as há… há! Que as há…há!
Tormentinha e Naifas acordaram estremunhados. Tormentinha riscou um palito e chegou-o à torcida do candeeiro de lata dependurado num buraco da parede. Esfregaram os olhos e viram, de calças na mão, meio enfiadas nas pernas, o Naifas que gritava, gesti-culando:
- Que as há… há! Que as há… há!
- Há o quê? – perguntou Nanho.
- As bruxas!... As bruxas!...
- Estás tonto ou ainda bêbedo!? Ou deste em palerma!? – gritou Tormentinha.
- Senti revoltas na barriga e fui-me abaixar, lá fora, de encosto a uma pedra. Era manhã alta e ainda ia pensando nas bruxas. Abaixei-me e, ao levantar os olhos, dei com um vulto de mulher, agachada, uns poucos de metros à frente, junto do cotovelo do muro. Fixei bem a vista e era uma mulher. Pareceu-me que tinha um pano pela cabeça e não se mexia. Sentada sobre os calcanhares, os joelhos avultavam na saia. Saltou-me logo à ideia que era uma bruxa, que terá vindo atrás de nós para alguma maldade. Ainda estive parado um pouquinho, mas logo corri para aqui – descreveu Naifas.
- Estás a mangar connosco, ou quê? – perguntou Nanho.
- Se não acreditais, vamos lá a ver! Até se me puseram arrepios na espinha! – res-pondeu Naifas.
- Medricas é o que tu és! – ajuntou Tormentinha.
- Vamos lá! – afirmou Nanho.
Os três formaram um triângulo para o ataque. À frente, em linha, Tormentinha com uma forquilha empunhada, e Nanho com um sacho ao alto, atrás e ao meio, Naifas com um fueiro, apontado para diante. Cautelosamente, foram avançando passo a passo, olhos bem abertos, que a claridade da Lua já era frouxa. Como num reconhecimento de guerra, abai-xaram-se, quase rastejando. Em volta, apenas o silêncio da madrugada. A um sinal de Naifas, pararam. Apenas os olhos rebuscando o terreno.
- Quem aí está, que venha! – afoitou-se Tormentinha, levantando-se.
Uma mulher, tremelicando, ergue-se com os braços levantados, a saia a rodar os tornozelos e uma cesta pendente do braço direito. Levantando a cabeça, com a voz enta-ramelada, berrou:
- Ó filhos da minha alma, sou gente de bem!... Que arremedo é o vosso?
Era a Tia Mónica da Torre, viúva, que andava de fazenda em fazenda a comprar ovos para ganhar alguma coisita, para ajudar no sustento dela e do filho surdo-mudo, que tinha em casa. Ia começar pelo Penedo. Enganara-se nas horas. Não tinha relógio. Agacha-ra-se no cotovelo do muro à espera da alvorada, para ir na busca da vida.
Os três da vida airada, rindo que nem uns perdidos, foram para as palhas aguardar o fim da madrugada.
Diziam que todas as Mónicas eram bruxas!
[1] Oração contra os bruxedos e outros males provocados por pessoas.
[2] Erisipela.
[3] Pequeno, insignificante.
[4] Paveias de palha com o grão dispostas, na eira, para serem batidas com o mangual.
[5] Três copos perfaziam um litro de vinho. Também um copo de vinho que custava três tostões ou trinta centavos ($30).
[6] Fósforos.
[7] Vinte centavos ($20).
[8] Quarenta centavos ($40).
[9] Selo de Salomão.
[10] Mangual.
[11] Feito de lã dos carneiros da raça merina.
[12] Que benze, exorcista.
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