Estilhaços no lago de púrpura, de Wilmar Silva (poesia, anomelivros, 2006)
eu quebrado por você sou estilhaços no lago de púrpura (...)
sou esta fonte d`água com as íris, retinas e olhos
sempre ávidos/eu wilmar silva, ávido por você/
Não apagamos as marcas do lugar em que estamos. Nossa situação no tempo e no espaço faz a diferença. Ao diferir conferimos. A diferença faz-nos falar (Hannah Arendt). Na obra de Wilmar Silva, vejo sempre o poeta como voyeur e errante, com olhos de viajante, viajor. Nos lugares por onde pisa, fala e escreve, nós, leitores, pisamos em um solo de incertezas do ser, quase uma “agropoética”, “agrolírica” de um poeta rural (que tem a certeza da cidade e de seus sortilégios ao lado) com um tom barroco, de um telurismo esbravejante, é uma poética da tensão.
Escrever uma resenha, ou um prefácio para alguém, para seu livro, é inserir um cartão de visita no livro do outro. É o que faço aqui com os Estilhaços no lago de púrpura. Neste curso de rio/linguagem, versos e poemas formam uma procissão fervorosa e matizada de pensamentos “desordenados”, ou de uma outra ordem, e rapsódicos. Uma sucessão de pensamentos sugerida e comandada pelo mundo exterior e pelo acaso das circunstâncias. Talvez haja uma representação do mundo como inessencial, e a escrita seria esta luta insana para refazer o essencial, para desfazer outra vez o essencial. E assim faz-se uma superposição complexa de construções, “puxadinhos” arquitetônicos de fragmentos poéticos que foram escritos e devem ser lidos de uma puxada só. De qualquer forma, é preciso que se saiba que todo livro pode ser lido de qualquer maneira e este também, abre-se uma página ao acaso, pode-se começar de trás pra frente, o leitor deve servir-se à vontade, mas, em minha opinião, a leitura seguida e num fôlego apressado é a mais indicada.
Para Nietzsche, é preciso esmigalhar o universo, estilhaçá-lo, como o demonstra Wilmar Silva, perder o respeito pelo todo. Afinal o que é o todo? Haveria uma glória da dispersão, de uma cintilação que recusa o mito do profundo oposto ao aparente. A superfície é importante: da pele, da linguagem, do êxtase, do embriagar-se. Podemos sentir esse apelo rapsódico como o apelo de uma “verdade” do mundo e do desregramento de todos os sentidos como o fez Rimbaud.
Nesta profusão de “eus” instituídos pelo “outro”, percebe-se uma falta de independência, essa falta de qualquer possibilidade de auto-segurança, que se deve ao fato de que a literatura é linguagem, e pura linguagem, participando inteiramente do estatuto da linguagem, ordem sem prova: um alto-mar sem ponto de referência nos cerrados de Rio Paranaíba, interior de Minas Gerais, de onde veio o poeta. Nestes 30 fragmentos poéticos, no vermelho da vida e de seus mistérios, vê-se que, naturalmente, escrever e ler são um substituto quase ascético para o ver e o falar, intermediações, luta corporal com o vir a ser em que o “eu” e o mundo travam sua disputa diária. Neste intervalo entre o eu e o outro, o nós se perde na terceira margem e Eco vence Narciso gritando, ecoando o canto triste e solitário da vida.
Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Pesquisadora, ensaísta e professora de literatura brasileira e portuguesa e teoria da literatura da PUC Minas, Betim, MG. Doutora em literatura comparada pela UFMG com a tese: Representações de diálogos dos mortos na literatura ocidental. Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo, Livro Aberto, 2000). E-mail: tidacarvalho@oi.com.br.
sou esta fonte d`água com as íris, retinas e olhos
sempre ávidos/eu wilmar silva, ávido por você/
Não apagamos as marcas do lugar em que estamos. Nossa situação no tempo e no espaço faz a diferença. Ao diferir conferimos. A diferença faz-nos falar (Hannah Arendt). Na obra de Wilmar Silva, vejo sempre o poeta como voyeur e errante, com olhos de viajante, viajor. Nos lugares por onde pisa, fala e escreve, nós, leitores, pisamos em um solo de incertezas do ser, quase uma “agropoética”, “agrolírica” de um poeta rural (que tem a certeza da cidade e de seus sortilégios ao lado) com um tom barroco, de um telurismo esbravejante, é uma poética da tensão.
Escrever uma resenha, ou um prefácio para alguém, para seu livro, é inserir um cartão de visita no livro do outro. É o que faço aqui com os Estilhaços no lago de púrpura. Neste curso de rio/linguagem, versos e poemas formam uma procissão fervorosa e matizada de pensamentos “desordenados”, ou de uma outra ordem, e rapsódicos. Uma sucessão de pensamentos sugerida e comandada pelo mundo exterior e pelo acaso das circunstâncias. Talvez haja uma representação do mundo como inessencial, e a escrita seria esta luta insana para refazer o essencial, para desfazer outra vez o essencial. E assim faz-se uma superposição complexa de construções, “puxadinhos” arquitetônicos de fragmentos poéticos que foram escritos e devem ser lidos de uma puxada só. De qualquer forma, é preciso que se saiba que todo livro pode ser lido de qualquer maneira e este também, abre-se uma página ao acaso, pode-se começar de trás pra frente, o leitor deve servir-se à vontade, mas, em minha opinião, a leitura seguida e num fôlego apressado é a mais indicada.
Para Nietzsche, é preciso esmigalhar o universo, estilhaçá-lo, como o demonstra Wilmar Silva, perder o respeito pelo todo. Afinal o que é o todo? Haveria uma glória da dispersão, de uma cintilação que recusa o mito do profundo oposto ao aparente. A superfície é importante: da pele, da linguagem, do êxtase, do embriagar-se. Podemos sentir esse apelo rapsódico como o apelo de uma “verdade” do mundo e do desregramento de todos os sentidos como o fez Rimbaud.
Nesta profusão de “eus” instituídos pelo “outro”, percebe-se uma falta de independência, essa falta de qualquer possibilidade de auto-segurança, que se deve ao fato de que a literatura é linguagem, e pura linguagem, participando inteiramente do estatuto da linguagem, ordem sem prova: um alto-mar sem ponto de referência nos cerrados de Rio Paranaíba, interior de Minas Gerais, de onde veio o poeta. Nestes 30 fragmentos poéticos, no vermelho da vida e de seus mistérios, vê-se que, naturalmente, escrever e ler são um substituto quase ascético para o ver e o falar, intermediações, luta corporal com o vir a ser em que o “eu” e o mundo travam sua disputa diária. Neste intervalo entre o eu e o outro, o nós se perde na terceira margem e Eco vence Narciso gritando, ecoando o canto triste e solitário da vida.
Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Pesquisadora, ensaísta e professora de literatura brasileira e portuguesa e teoria da literatura da PUC Minas, Betim, MG. Doutora em literatura comparada pela UFMG com a tese: Representações de diálogos dos mortos na literatura ocidental. Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo, Livro Aberto, 2000). E-mail: tidacarvalho@oi.com.br.
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