sábado, julho 01, 2006

Mulher da Vida - Cora Coralina


Mulher da Vida
Cora Coralina
Mulher da Vida,
minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo
imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.

Mulher da Vida,
minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis. Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre
por aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.

Flor sombria,
sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria,
da pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.

Um dia, numa cidade longínqua,
essa mulher corria perseguida
pelos homens que a tinham maculado.
Aflita, ouvindo o tropel dos perseguidores
e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.

A Justiça estendeu sua destra poderosa
e lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra”.

As pedras caíram e os cobradores deram s costas.

O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher... nem eu te condeno”.

A Justiça pesou a falta pelo peso do sacrifício
e este excedeu àquela. Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios
detém as urgências brutais do homem
para que na sociedade
possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.

Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.

Sem cobertura de leis e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada e imprescindível,
pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão, a levante,
e diga: minha companheira.

Mulher da Vida, minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça do Grande Juiz.
Serás remida e lavada de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida humilhada e sacrificada
para que a Família Humana possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível da sociedade,
de todos os povos, de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.

Declarou-lhe Jesus:
“Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes
vos precedem no Reino de Deus”.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.

Poesia dedicada, por Coralina, ao Ano Internacional da Mulher em 1975.
Poemas dos becos de Goiás, Global, 1983 - S.Paulo, Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário