ENTREVISTA
“O DESEJO DE VIAJAR É TAMBÉM DESEJO DE SABER”
Escritor baiano lança
simultaneamente dois novos livros
por Gustavo Atallah Haun (*)
Antonio Naud Júnior nasceu numa lua cheia em Gêmeos, no sul da Bahia. Passou a infância lendo comics, “As Mil e uma Noites”, clássicos ingleses, franceses, russos e assistindo “Túnel do Tempo”, na TV. Depois entrou numa longa viagem sem volta, colocando o pé na estrada e escrevendo incansavelmente.
Publicou sete livros, três deles em Portugal. Em agosto próximo lança mais dois, ambos pela editora baiana Via Litterarum: “Suave é o Coração Enamorado” e “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”. Faz parte também de “Contos Perversos”, antologia da Coleção Literatura Clandestina a ser lançada em breve, com o selo da Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE) – RJ.
Indescritível, a priori, é um escritor com frases surpreendentes, em curtos-circuitos de idéias que nos incendeiam o cérebro, em sínteses vertiginosas, em fórmulas crepitantes que riscam o céu mental iguais a relâmpagos. Como uma criança incendiada de dons, insaciável, perplexa com as coisas da vida, mas ensolarada por um sol da meia-noite, frequentemente enternecida. Por isso sua literatura é feita de paixão, vivência e vem merecendo reconhecimento por parte da crítica brasileira e européia, a partir de “Se um Viajante numa Espanha de Lorca” (Coimbra, Pé de Página Editores, 2005), livro que recupera inesperadas dimensões de uma vida errante, sempre instigante.
Embora sem distribuição no Brasil, ”Se um Viajante numa Espanha de Lorca” abriu portas para a sua literatura. Concorda que a memória é a protagonista absoluta dele?
“Se um Viajante...” é um livro de crônicas com o bônus de dois ensaios e um conto. Há nele um tom de confissão, que se pretende relato de uma experiência pessoal, de encontro com uma sociedade, com outras culturas. Então, como é natural, elementos de minha vida e da vida de pessoas que encontrei ao longo do caminho estão nas suas páginas. Só que todo relato que se pretende fiel à memória tem uma dose de mentira, tem seu lado ficcional, essa mentira que é a ficção. Tanto é assim que para várias pessoas “Se um Viajante...” é um texto de ficção. Eles não se reconhecem ou se reconhecem em partes. Assim, uma certa dose de ficção está presente até mesmo num relato de viagens.
Por que você escreve?
Porque creio que um bom livro é mais importante do que muitas coisas consideradas importantes. Por exemplo, “O Morro dos Ventos Uivantes”, o meu romance favorito, escrito no século XIX, continua vivíssimo. Entretanto quem lembra dos políticos, religiosos, empresários, belezuras, nobres ou fidalgos que viviam na mesma ocasião na Yorkshire da escritora Emily Bronte? Eles estão mortos, enterrados e ... esquecidos! E com certeza, na sua época, suas ações eram consideradas mais importantes do que a literatura de Emily. Escrevo também por uma necessidade de escrever que surge de uma falta, de uma ausência, como muitos autores já declararam. A distância também me incentivou muito a escrever, o fato de estar longe do Brasil, muito longe da Bahia, permitiu-me escrever com mais liberdade e vontade.
Qual a missão do escritor?
Não acredito numa missão literária, tampouco em mensagens. A escrita literária precisa de paixão e preocupação, nunca de sermões, apalpos ou conselhos. Deixemos essas coisas para livros de auto-ajuda. A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. Ele deve ser amado se for um bom escritor. Qualquer tragédia de Eurípedes vale mais do que qualquer punhado de boas intenções.
Como pode garantir que um escritor é bom em sua escrita?
Constatando se ele inventou o seu estilo. Se ele colocou sinceramente para fora o que está querendo mostrar dele mesmo. Se ele naturalmente libertou sua mente, suas energias. Não há nada mais enfadonho do que escritores formais ou que escrevam corretamente, sem enfrentar os seus próprios fantasmas. O triste é que eles existem aos montes, multiplicando-se tão facilmente como as baratas.
Por que viaja tanto?
Eu nasci numa fazenda nas Terras do Sem Fim de Jorge Amado, cercado por cidades de porte médio perfeitas para fábulas sombrias de Tim Burton ou David Lynch: seus moradores até hoje não vivem no mundo das idéias, não há alimento espiritual dessa natureza. Está lá, mas eles não sabem como expressá-la. A conversa consiste em trivialidades: crimes, telenovelas, infidelidades, reputações arruinadas, ofensas políticas, futebol etc. Nunca o aspecto existencial da vida é discutido. Eu ainda hoje fico espantado, porque as pessoas que não vivem no mundo das idéias, murcham rápido, numa velhice precoce assustadora. Eu me aproximei da psique das idéias por meio dos livros. Pensava nisso por conta própria, como um pecado. Então surgiu o desejo de viajar. Afinal, o desejo de viajar é também desejo de saber. Para conhecermos nossa própria comunidade, devemos primeiro conhecer boa parte do mundo. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as visões que passam na minha mente.
De acordo com a sua experiência, até que ponto um estrangeiro é capaz de compreender a peculiar realidade do Brasil?
O estrangeiro bate no liquidificador mental mundos imagináveis, desejados, exóticos e assustadores. Ele busca o outro a partir do que já ouviu falar, de certa visão da geografia e costumes. Muitas vezes erra feio, como Bush que imaginava Buenos Aires como a capital do Brasil. Também enfrentamos uma pré-concepção do que seja literatura latino-americana. Os estrangeiros têm um clichê à espera de um texto vindo da América Latina: como se qualquer escritor latino-americano tivesse que ter os mesmos ingredientes fantásticos de García Márquez, Jorge Luiz Borges ou Isabel Allende. Como ficaria então um Autran Dourado ou uma Hilda Hilst?
Já que viveu muitos anos de sua vida no exterior, considera-se um escritor brasileiro?
A noção de pátria está relacionada com a língua e também com a memória. O que mais marca a vida de um escritor, talvez, seja a memória e a língua que ele fala. Como bem disse Caetano Veloso, minha pátria é minha língua, portanto sou um escritor brasileiro. A brasilidade está presente na língua, mas não sei até que ponto está presente na minha paisagem existencial. Porque não posso definir o meu cenário como “paisagem brasileira”, já que vivi mais de dez anos em diversos países. O meu mundo não tem fronteiras. Sou como os índios ou os ciganos, cujo território em que vivem não tem fronteiras para eles. E para todos nós, escritores-viajantes, a noção de terra sem fronteiras está muito presente. Também não acredito no patriotismo, cheira-me a fascismo. Sempre desejo o melhor para a humanidade como um todo. Eu jamais lutaria numa guerra para defender interesses patrióticos. Teria vergonha de matar um semelhante, mesmo que ele fosse nazista.
Certa vez me disse que o primeiro livro que leu foi “As Mil e uma Noites”.
Possivelmente. Minha memória é algo fantasiosa. Eu lia esses contos delirantes quando era um menino de oito, nove anos, e para mim pareciam sublimes, tão maravilhosos que até hoje não ouso reler “As Mil e uma Noites” porque tenho medo de me decepcionar.
O que anda lendo?
O italiano Alessandro Baricco – que entrevistei em Milão -, “Catarina Paraguaçu – A Mãe do Brasil”, de Tasso Franco, e “Rincões dos Frutos de Ouro”, de Sabóia Ribeiro. Sem deixar de continuar fiel ao talento de John Fante, Paul Bowles, D. H. Lawrence, Virgínia Woolf e tantos outros.
Vejo que lê autores baianos...
Lógico que leio! Considero Hélio Pólvora, Jorge Emílio Medauar e Adonias Filho escritores extraordinários. Comecei com Hélio, no extinto jornal Cacau/Letras, e sempre lembrarei desse fato como um privilégio. Inclusive, terminei recentemente um livro seu brilhante: “Da Noite Fechada”. Gosto imensamente da poética de Waly Salomão, Jorge de Souza Araújo e Florisvaldo Mattos. Também acompanho a produção dos jovens escritores. O problema da literatura baiana, ou talvez nordestina, é a servidão ao regionalismo; é um defunto que não querem enterrar. Em pleno século XXI, nossos escritores e poetas continuam insistindo em escrever sobre vaqueiros e caatingas - o vasto sertão abençoado por Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. Talvez acreditem que dessa forma conquistarão mais facilmente leitores e críticos. Ledo engano. Por que não deixar tal oportunismo para a Globo Filmes com suas Lisbelas, coronéis e Compadecidas?
Em sua opinião, qual é o aspecto mais difícil do ato de escrever?
A construção de um universo mágico que me emocione e, consequentemente, emocione o leitor. Transformar a literatura num oceano de prazer. É a parte mais difícil. Sou exigente, faço questão que o texto ou o poema me comova. O mais fácil é o ato de escrever em si – a história, a descrição, os diálogos – que simplesmente flui.
A sua literatura se deixa influenciar?
A angústia da influência tão badalada por Harold Bloom é questionável. Talvez sim, talvez não, depende da forma que é analisada. Pode ser que toda a literatura contemporânea seja cópia de diversas obras do passado, porém não deixa de ser única, original, se foi escrita com personalidade e sensibilidade. Eu admiro autores completamente distintos na sua forma de escrever, de Victor Hugo a Clarice Lispector, de Leon Tolstoi a Fitzgerald, de Tennessee Williams a Ítalo Calvino. Portanto, qual deles pode estar me influenciando? Sempre fui muito grato por aquilo que puderam me apontar quanto a erros de ortografia e más construções, mas no que diz respeito à essência da escrita, nunca me deixei influenciar.
Que papel você sente que o homoerotismo desempenha no seu desenvolvimento como escritor?
Os elementos sensuais desempenham papéis-chave na minha literatura: odores, texturas, sexualidade, funções corporais. No entanto, seria incorreto classificá-los como especificamente homossexuais, bissexuais ou sei lá o que, pois eu não acredito numa literatura homoerótica, assim como não acredito numa literatura feminina ou masculina. Todos os escritores são seres andróginos. Por exemplo, Hilda Hilst, que não era homossexual, escreveu com grande pertinência a história gay “Rútilo Nada”, assim como o cearense Adolfo Caminha, que é considerado, em todo o mundo, o primeiro escritor a abordar o amor homossexual de forma direta: “O Bom Crioulo”, de 1895. Eu tenho pavor a guetos, evito-os no meu cotidiano, na minha literatura. Agora acho que os escritores gays, entre outros temas, devem escrever sobre sua sexualidade sem tabu ou covardia. Eu admiro o imaginário homossexual das novelas de James Baldwin, André Gide, Jean Genet, Yukio Mishima e Christopher Isherwood. No Brasil, falta autenticidade e audácia para abordar o desejo homossexual. Escritores como João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu ou Antonio Cícero ficam em cima do muro. Mário de Andrade, Sosígenes Costa, Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Pedro Nava e Lúcio Cardoso nunca ousaram sair do armário. O mineiro Lúcio costumava dizer: "O que ocultamos, é o que importa, é o que somos”. Que comportamento ambíguo! Cassandra Rios, João Silvério Trevisan, Roberto Piva, Aguinaldo Silva e Bernardo Carvalho são casos raros de escritores brasileiros que não usam máscaras. É uma situação careta, reprimida, inconcebível nesse momento em que o mercado literário internacional aposta sem receios em histórias gays ou lésbicas.
Como descreveria “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”?
São 55 contos, escritos ao longo de duas décadas, que meditam sobre a existência, vista através de personagens imaginárias ou não. Foram construídos primordialmente sobre sensações fundamentais, que no decorrer do livro são analisadas, estudadas, definidas, redefinidas. Falam da alma, do corpo, do absurdo, da vertigem, do kistch, da mediocridade, da força e da fraqueza, às vezes em um ritmo de história policial, outros como contos de terror, sem deixar de experimentar o intimismo, o abstrato ou o realismo seco de um Raymond Carver. Tiro vantagens de infinitas possibilidades. Contudo é a linguagem poética que dá unidade aos temas e suas variações, dando coerência ao todo. São contos que provocarão repulsa, compaixão ou tesão. Como sou maluco, a liberdade deles é ilimitada. Talvez até alguns deles sejam taxados de pornográficos, mas a verdadeira pornografia é a maldade do homem contra o homem, a violência, a guerra, o genocídio.
O que “Suave é o Coração Enamorado” oferece ao leitor que um livro convencional não faz?
Minhas imagens poéticas estão sujeitas a um sem-números de variações, e muitas delas podem ser interessantes além de válidas por si mesmas. Acumulo imagens, ao mesmo tempo que procuro novas imagens. A minha poesia brota de algo denso, próprio; tem uma natureza única. Ela vomita sinceridade e vivência, e consequentemente expande o campo de visão do leitor. Acredito que tocado pela palavra poética, ele possa abrir o seu próprio coração e avaliar o seu ser, as suas inquietações. Ao contrário do que o título sugere, “Suave é o Coração Enamorado” não é um livro romântico, dócil, fácil, tolo. Esse coração fascinado por diversas coisas, desde paisagens a conexões espirituais, vive uma intensa troca de sentimentos para continuar pulsando. Não é um coração excitado por ambições, a vida dele não é um show, por uma questão de temperamento não desfruta do superficial. Tampouco é um coração feliz; é um coração que denuncia, protesta e questiona. Segundo o mestre William Faulkner, um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que duas dessas, às vezes até mesmo uma, podem suprir a falta da outra. Nesse meu livro o leitor encontrará todas essas três coisas.
Teme que o leitor não compreenda o que escreve? E quanto aos críticos?
Como disse antes, escrevo para agradar a minha pessoa. O leitor é apenas conseqüência do meu ofício. Nenhum escritor deve idealizar a compreensão perfeita do leitor. O importante é o encontro de simpatias, de emoções, de tentativas de um desvendar o outro. Quanto aos críticos, certa vez Jorge Amado disse que nenhum crítico ensina ninguém a escrever. Eu concordo.
Como bem lembrou, Faulkner se referiu à experiência, observação e imaginação como sendo importantes para o escritor. Você não incluiria a inspiração?
Não sei nada a respeito da inspiração, porque não sei o que é – ouvi falar dela, mas nunca a vi. Penso que sou diferente de outros escritores. Falo de escritores que acreditam na inspiração e sofrem ao escrever. Sempre achei agradável escrever, e não entendo o que as pessoas querem dizer com “angústia da criação”. Eu sinto prazer e facilidade em escrever e acredito que de certo modo a minha literatura é boa. Se irá permanecer, não tenho a menor idéia.
(*) Poeta e professor de redação e literatura.
LANÇAMENTOS
SUAVE É O CORAÇÃO ENAMORADO (Poesia)
Prefácio de José Inácio Vieira de Melo
176 págs.
Valor: 20 Reais
Via Litterarum Editora
PEQUENAS HISTÓRIAS DO DELÍRIO PECULIAR HUMANO (Ficções)
Prefácio de Ruy do Carmo Póvoas
148 págs.
Valor: 17 Reais
Via Litterarum Editora
“O DESEJO DE VIAJAR É TAMBÉM DESEJO DE SABER”
Escritor baiano lança
simultaneamente dois novos livros
por Gustavo Atallah Haun (*)
Antonio Naud Júnior nasceu numa lua cheia em Gêmeos, no sul da Bahia. Passou a infância lendo comics, “As Mil e uma Noites”, clássicos ingleses, franceses, russos e assistindo “Túnel do Tempo”, na TV. Depois entrou numa longa viagem sem volta, colocando o pé na estrada e escrevendo incansavelmente.
Publicou sete livros, três deles em Portugal. Em agosto próximo lança mais dois, ambos pela editora baiana Via Litterarum: “Suave é o Coração Enamorado” e “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”. Faz parte também de “Contos Perversos”, antologia da Coleção Literatura Clandestina a ser lançada em breve, com o selo da Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE) – RJ.
Indescritível, a priori, é um escritor com frases surpreendentes, em curtos-circuitos de idéias que nos incendeiam o cérebro, em sínteses vertiginosas, em fórmulas crepitantes que riscam o céu mental iguais a relâmpagos. Como uma criança incendiada de dons, insaciável, perplexa com as coisas da vida, mas ensolarada por um sol da meia-noite, frequentemente enternecida. Por isso sua literatura é feita de paixão, vivência e vem merecendo reconhecimento por parte da crítica brasileira e européia, a partir de “Se um Viajante numa Espanha de Lorca” (Coimbra, Pé de Página Editores, 2005), livro que recupera inesperadas dimensões de uma vida errante, sempre instigante.
Embora sem distribuição no Brasil, ”Se um Viajante numa Espanha de Lorca” abriu portas para a sua literatura. Concorda que a memória é a protagonista absoluta dele?
“Se um Viajante...” é um livro de crônicas com o bônus de dois ensaios e um conto. Há nele um tom de confissão, que se pretende relato de uma experiência pessoal, de encontro com uma sociedade, com outras culturas. Então, como é natural, elementos de minha vida e da vida de pessoas que encontrei ao longo do caminho estão nas suas páginas. Só que todo relato que se pretende fiel à memória tem uma dose de mentira, tem seu lado ficcional, essa mentira que é a ficção. Tanto é assim que para várias pessoas “Se um Viajante...” é um texto de ficção. Eles não se reconhecem ou se reconhecem em partes. Assim, uma certa dose de ficção está presente até mesmo num relato de viagens.
Por que você escreve?
Porque creio que um bom livro é mais importante do que muitas coisas consideradas importantes. Por exemplo, “O Morro dos Ventos Uivantes”, o meu romance favorito, escrito no século XIX, continua vivíssimo. Entretanto quem lembra dos políticos, religiosos, empresários, belezuras, nobres ou fidalgos que viviam na mesma ocasião na Yorkshire da escritora Emily Bronte? Eles estão mortos, enterrados e ... esquecidos! E com certeza, na sua época, suas ações eram consideradas mais importantes do que a literatura de Emily. Escrevo também por uma necessidade de escrever que surge de uma falta, de uma ausência, como muitos autores já declararam. A distância também me incentivou muito a escrever, o fato de estar longe do Brasil, muito longe da Bahia, permitiu-me escrever com mais liberdade e vontade.
Qual a missão do escritor?
Não acredito numa missão literária, tampouco em mensagens. A escrita literária precisa de paixão e preocupação, nunca de sermões, apalpos ou conselhos. Deixemos essas coisas para livros de auto-ajuda. A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. Ele deve ser amado se for um bom escritor. Qualquer tragédia de Eurípedes vale mais do que qualquer punhado de boas intenções.
Como pode garantir que um escritor é bom em sua escrita?
Constatando se ele inventou o seu estilo. Se ele colocou sinceramente para fora o que está querendo mostrar dele mesmo. Se ele naturalmente libertou sua mente, suas energias. Não há nada mais enfadonho do que escritores formais ou que escrevam corretamente, sem enfrentar os seus próprios fantasmas. O triste é que eles existem aos montes, multiplicando-se tão facilmente como as baratas.
Por que viaja tanto?
Eu nasci numa fazenda nas Terras do Sem Fim de Jorge Amado, cercado por cidades de porte médio perfeitas para fábulas sombrias de Tim Burton ou David Lynch: seus moradores até hoje não vivem no mundo das idéias, não há alimento espiritual dessa natureza. Está lá, mas eles não sabem como expressá-la. A conversa consiste em trivialidades: crimes, telenovelas, infidelidades, reputações arruinadas, ofensas políticas, futebol etc. Nunca o aspecto existencial da vida é discutido. Eu ainda hoje fico espantado, porque as pessoas que não vivem no mundo das idéias, murcham rápido, numa velhice precoce assustadora. Eu me aproximei da psique das idéias por meio dos livros. Pensava nisso por conta própria, como um pecado. Então surgiu o desejo de viajar. Afinal, o desejo de viajar é também desejo de saber. Para conhecermos nossa própria comunidade, devemos primeiro conhecer boa parte do mundo. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as visões que passam na minha mente.
De acordo com a sua experiência, até que ponto um estrangeiro é capaz de compreender a peculiar realidade do Brasil?
O estrangeiro bate no liquidificador mental mundos imagináveis, desejados, exóticos e assustadores. Ele busca o outro a partir do que já ouviu falar, de certa visão da geografia e costumes. Muitas vezes erra feio, como Bush que imaginava Buenos Aires como a capital do Brasil. Também enfrentamos uma pré-concepção do que seja literatura latino-americana. Os estrangeiros têm um clichê à espera de um texto vindo da América Latina: como se qualquer escritor latino-americano tivesse que ter os mesmos ingredientes fantásticos de García Márquez, Jorge Luiz Borges ou Isabel Allende. Como ficaria então um Autran Dourado ou uma Hilda Hilst?
Já que viveu muitos anos de sua vida no exterior, considera-se um escritor brasileiro?
A noção de pátria está relacionada com a língua e também com a memória. O que mais marca a vida de um escritor, talvez, seja a memória e a língua que ele fala. Como bem disse Caetano Veloso, minha pátria é minha língua, portanto sou um escritor brasileiro. A brasilidade está presente na língua, mas não sei até que ponto está presente na minha paisagem existencial. Porque não posso definir o meu cenário como “paisagem brasileira”, já que vivi mais de dez anos em diversos países. O meu mundo não tem fronteiras. Sou como os índios ou os ciganos, cujo território em que vivem não tem fronteiras para eles. E para todos nós, escritores-viajantes, a noção de terra sem fronteiras está muito presente. Também não acredito no patriotismo, cheira-me a fascismo. Sempre desejo o melhor para a humanidade como um todo. Eu jamais lutaria numa guerra para defender interesses patrióticos. Teria vergonha de matar um semelhante, mesmo que ele fosse nazista.
Certa vez me disse que o primeiro livro que leu foi “As Mil e uma Noites”.
Possivelmente. Minha memória é algo fantasiosa. Eu lia esses contos delirantes quando era um menino de oito, nove anos, e para mim pareciam sublimes, tão maravilhosos que até hoje não ouso reler “As Mil e uma Noites” porque tenho medo de me decepcionar.
O que anda lendo?
O italiano Alessandro Baricco – que entrevistei em Milão -, “Catarina Paraguaçu – A Mãe do Brasil”, de Tasso Franco, e “Rincões dos Frutos de Ouro”, de Sabóia Ribeiro. Sem deixar de continuar fiel ao talento de John Fante, Paul Bowles, D. H. Lawrence, Virgínia Woolf e tantos outros.
Vejo que lê autores baianos...
Lógico que leio! Considero Hélio Pólvora, Jorge Emílio Medauar e Adonias Filho escritores extraordinários. Comecei com Hélio, no extinto jornal Cacau/Letras, e sempre lembrarei desse fato como um privilégio. Inclusive, terminei recentemente um livro seu brilhante: “Da Noite Fechada”. Gosto imensamente da poética de Waly Salomão, Jorge de Souza Araújo e Florisvaldo Mattos. Também acompanho a produção dos jovens escritores. O problema da literatura baiana, ou talvez nordestina, é a servidão ao regionalismo; é um defunto que não querem enterrar. Em pleno século XXI, nossos escritores e poetas continuam insistindo em escrever sobre vaqueiros e caatingas - o vasto sertão abençoado por Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. Talvez acreditem que dessa forma conquistarão mais facilmente leitores e críticos. Ledo engano. Por que não deixar tal oportunismo para a Globo Filmes com suas Lisbelas, coronéis e Compadecidas?
Em sua opinião, qual é o aspecto mais difícil do ato de escrever?
A construção de um universo mágico que me emocione e, consequentemente, emocione o leitor. Transformar a literatura num oceano de prazer. É a parte mais difícil. Sou exigente, faço questão que o texto ou o poema me comova. O mais fácil é o ato de escrever em si – a história, a descrição, os diálogos – que simplesmente flui.
A sua literatura se deixa influenciar?
A angústia da influência tão badalada por Harold Bloom é questionável. Talvez sim, talvez não, depende da forma que é analisada. Pode ser que toda a literatura contemporânea seja cópia de diversas obras do passado, porém não deixa de ser única, original, se foi escrita com personalidade e sensibilidade. Eu admiro autores completamente distintos na sua forma de escrever, de Victor Hugo a Clarice Lispector, de Leon Tolstoi a Fitzgerald, de Tennessee Williams a Ítalo Calvino. Portanto, qual deles pode estar me influenciando? Sempre fui muito grato por aquilo que puderam me apontar quanto a erros de ortografia e más construções, mas no que diz respeito à essência da escrita, nunca me deixei influenciar.
Que papel você sente que o homoerotismo desempenha no seu desenvolvimento como escritor?
Os elementos sensuais desempenham papéis-chave na minha literatura: odores, texturas, sexualidade, funções corporais. No entanto, seria incorreto classificá-los como especificamente homossexuais, bissexuais ou sei lá o que, pois eu não acredito numa literatura homoerótica, assim como não acredito numa literatura feminina ou masculina. Todos os escritores são seres andróginos. Por exemplo, Hilda Hilst, que não era homossexual, escreveu com grande pertinência a história gay “Rútilo Nada”, assim como o cearense Adolfo Caminha, que é considerado, em todo o mundo, o primeiro escritor a abordar o amor homossexual de forma direta: “O Bom Crioulo”, de 1895. Eu tenho pavor a guetos, evito-os no meu cotidiano, na minha literatura. Agora acho que os escritores gays, entre outros temas, devem escrever sobre sua sexualidade sem tabu ou covardia. Eu admiro o imaginário homossexual das novelas de James Baldwin, André Gide, Jean Genet, Yukio Mishima e Christopher Isherwood. No Brasil, falta autenticidade e audácia para abordar o desejo homossexual. Escritores como João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu ou Antonio Cícero ficam em cima do muro. Mário de Andrade, Sosígenes Costa, Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Pedro Nava e Lúcio Cardoso nunca ousaram sair do armário. O mineiro Lúcio costumava dizer: "O que ocultamos, é o que importa, é o que somos”. Que comportamento ambíguo! Cassandra Rios, João Silvério Trevisan, Roberto Piva, Aguinaldo Silva e Bernardo Carvalho são casos raros de escritores brasileiros que não usam máscaras. É uma situação careta, reprimida, inconcebível nesse momento em que o mercado literário internacional aposta sem receios em histórias gays ou lésbicas.
Como descreveria “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”?
São 55 contos, escritos ao longo de duas décadas, que meditam sobre a existência, vista através de personagens imaginárias ou não. Foram construídos primordialmente sobre sensações fundamentais, que no decorrer do livro são analisadas, estudadas, definidas, redefinidas. Falam da alma, do corpo, do absurdo, da vertigem, do kistch, da mediocridade, da força e da fraqueza, às vezes em um ritmo de história policial, outros como contos de terror, sem deixar de experimentar o intimismo, o abstrato ou o realismo seco de um Raymond Carver. Tiro vantagens de infinitas possibilidades. Contudo é a linguagem poética que dá unidade aos temas e suas variações, dando coerência ao todo. São contos que provocarão repulsa, compaixão ou tesão. Como sou maluco, a liberdade deles é ilimitada. Talvez até alguns deles sejam taxados de pornográficos, mas a verdadeira pornografia é a maldade do homem contra o homem, a violência, a guerra, o genocídio.
O que “Suave é o Coração Enamorado” oferece ao leitor que um livro convencional não faz?
Minhas imagens poéticas estão sujeitas a um sem-números de variações, e muitas delas podem ser interessantes além de válidas por si mesmas. Acumulo imagens, ao mesmo tempo que procuro novas imagens. A minha poesia brota de algo denso, próprio; tem uma natureza única. Ela vomita sinceridade e vivência, e consequentemente expande o campo de visão do leitor. Acredito que tocado pela palavra poética, ele possa abrir o seu próprio coração e avaliar o seu ser, as suas inquietações. Ao contrário do que o título sugere, “Suave é o Coração Enamorado” não é um livro romântico, dócil, fácil, tolo. Esse coração fascinado por diversas coisas, desde paisagens a conexões espirituais, vive uma intensa troca de sentimentos para continuar pulsando. Não é um coração excitado por ambições, a vida dele não é um show, por uma questão de temperamento não desfruta do superficial. Tampouco é um coração feliz; é um coração que denuncia, protesta e questiona. Segundo o mestre William Faulkner, um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que duas dessas, às vezes até mesmo uma, podem suprir a falta da outra. Nesse meu livro o leitor encontrará todas essas três coisas.
Teme que o leitor não compreenda o que escreve? E quanto aos críticos?
Como disse antes, escrevo para agradar a minha pessoa. O leitor é apenas conseqüência do meu ofício. Nenhum escritor deve idealizar a compreensão perfeita do leitor. O importante é o encontro de simpatias, de emoções, de tentativas de um desvendar o outro. Quanto aos críticos, certa vez Jorge Amado disse que nenhum crítico ensina ninguém a escrever. Eu concordo.
Como bem lembrou, Faulkner se referiu à experiência, observação e imaginação como sendo importantes para o escritor. Você não incluiria a inspiração?
Não sei nada a respeito da inspiração, porque não sei o que é – ouvi falar dela, mas nunca a vi. Penso que sou diferente de outros escritores. Falo de escritores que acreditam na inspiração e sofrem ao escrever. Sempre achei agradável escrever, e não entendo o que as pessoas querem dizer com “angústia da criação”. Eu sinto prazer e facilidade em escrever e acredito que de certo modo a minha literatura é boa. Se irá permanecer, não tenho a menor idéia.
(*) Poeta e professor de redação e literatura.
LANÇAMENTOS
SUAVE É O CORAÇÃO ENAMORADO (Poesia)
Prefácio de José Inácio Vieira de Melo
176 págs.
Valor: 20 Reais
Via Litterarum Editora
PEQUENAS HISTÓRIAS DO DELÍRIO PECULIAR HUMANO (Ficções)
Prefácio de Ruy do Carmo Póvoas
148 págs.
Valor: 17 Reais
Via Litterarum Editora
Nenhum comentário:
Postar um comentário