sexta-feira, junho 16, 2006

POSSESSÃO por Domingos de Souza Nogueira Neto


POSSESSÃO
Domingos de Souza Nogueira Neto


Carlos nunca foi religioso, e nem teve fé em nada, que não na bondade natural. Era de fato um homem bom. Incapaz da mentira, da maledicência e, para dizer a verdade, dono da imaginação limitada das pessoas virtuosas. A história que relato merece, portanto, a mesma fé que dedico ao amigo, havendo aura de verdade a iluminá-la.
O ocorrido se deu em uma pequena cidade do país. Os seus moradores nada sabem do que se passou, e é por esta razão, entre outras, que certamente serão entendidas, que não vou mencionar o nome do local onde tudo aconteceu.
Pobre, morava só em uma pequena casa de tijolos sem reboco. Trabalhava de bicicleta distribuindo pães para a padaria ao lado da igreja, acordava cedo para a lida, mas não ganhava quase nada, porque dava a sobra para os meninos dos arredores.
Foi a sombra na janela, sempre aberta para o sono da noite, que sinalizou para a presença estranha. Aparentemente apenas a lua cheia contra o pé de mamona no quintal. Virou-se e tornou a dormir.
O arranhão fino no peito, o chiado seco do tecido rasgado e o perfume doce de flores esquecidas o acordaram.
Ali estava ela, ajoelhada sobre o seu peito, os olhos miravam algo através dele, o vestido, quase como se não houvera, deixava a mostra às formas generosas do corpo. As unhas, afiadas como navalhas, haviam cortado a camiseta de malha já gasta pelo uso, e a parte da frente da bermuda de tecido grosseiro. Riscado no corpo o arranhão fino, absolutamente reto, da linha do pescoço até a marca da virilha, onde a ausência do sangue deixava clara a intenção de cortar apenas o que era pano.
O rosto bonito não traduzia nenhuma expressão, mas os mamilos intumescidos indicavam a natureza sexual da visita. A ereção firme o surpreendeu contrariado. E com um sorriso longínquo ela o introduziu dentro dela. Galopou ali, como cavalga um garanhão no deserto. E, num misto de vazio e prazer intenso ele se deixou levar.
Sabia que a própria alma estava sendo sugada e aos poucos os olhos se tornavam vazios como aqueles que os escravizavam. Não havia mais preocupações, com a falta de dinheiro, a casinha caída e os meninos famintos a espera do pão. Os meninos...
A lembrança dos meninos – como brilham os olhos das crianças pobres! – devolveram uma centelha aos seus olhos, e foi, apenas com esta breve faísca, que a puxou para ele, e em pleno gozo, a beijou.
Como era bela! Pôde ver os olhos baços refletindo a pequena chama, depois se iluminando, primeiro tristes, depois felizes, mas o foco sempre sobre ele, e o sorriso levemente insinuado nos lábios beijados. O corpo, sensual, foi se tornando leve, translúcido, diáfano e por fim... sumiu! Deixando no ar apenas o leve perfume dos que são possuídos por um lampejo de bondade.
Fonte: http://judoepoesia.blogspot.com/

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