10/5/2006 21:58:00 Homem e bandoneón
Por Carola Saavedra
De perto, a pele morena, a barba por fazer, os lábios ressequidos que se moviam como se murmurassem, os dois vincos fundos ladeando a boca e o nariz inchado, estendendo-se feito garra pelo rosto. E seria um rosto agressivo, não fosse a suavidade da expressão ausente, os olhos pequenos e gastos que pareciam olhar para dentro, como se olhassem pelo avesso.
Afastando-se um pouco, era um homem de ombros murchos dentro de um paletó emprestado, era um homem velho em velhas roupas de domingo, e um tecido grave e áspero envolvendo o corpo, e um corpo grave e áspero que envolvia a caixa de madeira, com seus botões e relevos incrustados. Afastando-se um pouco mais, aquela mesma caixa era então instrumento, um bandoneón que o homem apoiava sobre uma das pernas, que o homem abria e fechava como quem abre e fecha um leque, extraindo dele notas e compassos. E se fosse possível afastar-se ainda mais, no chão, à sua frente, surgiria um chapéu de bordas puídas e interior vazio, as contribuições que nunca vinham, os gestos que faltavam, ao fundo, a calçada sem árvores, as casas com suas portas fechadas.
Fato é que o homem abraçava o bandoneón e desse abraço saía um choro alongado e insistente, como se o instrumento recontasse histórias e tristezas circulares. O homem tocava distraído e mal se dava conta da rua vazia, e mais ao longe, do outro lado, a exposição, os corredores, as salas do museu, onde as pessoas, alheias e rápidas, passavam a vista sobre as telas, sem perceber o lamento sincopado que vinha daquele pequeno quadro, e deixando o bandoneonista sozinho no silêncio dos aplausos.
Carola Saavedra publicou em 2005 o livro de contos Do lado de fora pela editora 7Letras (Coleção Rocinante) Fonte: http://www.cronopios.com.br/
Por Carola Saavedra
De perto, a pele morena, a barba por fazer, os lábios ressequidos que se moviam como se murmurassem, os dois vincos fundos ladeando a boca e o nariz inchado, estendendo-se feito garra pelo rosto. E seria um rosto agressivo, não fosse a suavidade da expressão ausente, os olhos pequenos e gastos que pareciam olhar para dentro, como se olhassem pelo avesso.
Afastando-se um pouco, era um homem de ombros murchos dentro de um paletó emprestado, era um homem velho em velhas roupas de domingo, e um tecido grave e áspero envolvendo o corpo, e um corpo grave e áspero que envolvia a caixa de madeira, com seus botões e relevos incrustados. Afastando-se um pouco mais, aquela mesma caixa era então instrumento, um bandoneón que o homem apoiava sobre uma das pernas, que o homem abria e fechava como quem abre e fecha um leque, extraindo dele notas e compassos. E se fosse possível afastar-se ainda mais, no chão, à sua frente, surgiria um chapéu de bordas puídas e interior vazio, as contribuições que nunca vinham, os gestos que faltavam, ao fundo, a calçada sem árvores, as casas com suas portas fechadas.
Fato é que o homem abraçava o bandoneón e desse abraço saía um choro alongado e insistente, como se o instrumento recontasse histórias e tristezas circulares. O homem tocava distraído e mal se dava conta da rua vazia, e mais ao longe, do outro lado, a exposição, os corredores, as salas do museu, onde as pessoas, alheias e rápidas, passavam a vista sobre as telas, sem perceber o lamento sincopado que vinha daquele pequeno quadro, e deixando o bandoneonista sozinho no silêncio dos aplausos.
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