sábado, maio 13, 2006

FREUD E A PRINCESA


Freud e a princesa
Romance baseado em roteiro de filme feito para TV francesa revela a interessante personalidade de Marie Bonaparte, que salvou o criador da psicanálise do nazismo
João Paulo
No momento em que o mundo celebra os 150 anos de nascimento de Sigmund Freud (1856-1939), um romance despretensioso apresenta período destacado da vida do criador da psicanálise – sua fuga do nazismo – e traz personagem fundamental nesse processo: a princesa Marie Bonaparte. Com sua dupla inscrição no imaginário do Ocidente (princesa e sobrinha-neta de Napoleão), Marie teve relações intensas com a psicanálise e seu fundador. É aí que o livro mostra seu interesse, ao resgatar a história a partir do olhar de uma mulher sedutora. O livro Freud e a princesa Bonaparte é a adaptação para a forma de romance do roteiro do telefilme feito para o canal francês Art de France 2, estrelado por Catherine Deneuve e dirigido por Benoit Jacquot. François-Olivier Rousseau (que dividiu os créditos do roteiro com Louis Gardel) é romancista premiado e já havia feito o mesmo caminho com seu roteiro Les enfants du siècle. O fato de a novela derivar de uma produção para a TV deixa suas marcas no texto: acento nos diálogos, tendência ao didatismo, glamourização de personagens e fatos. Mas a mão experiente do autor faz desses apelos à simplicidade um atrativo a mais. O livro tem seriedade sem ser pesado. As relações de Marie Bonaparte com Freud foram de ordem teórica e prática. No campo da teoria, escreveu livros e artigos, sobretudo sobre a sexualidade feminina. Apesar de discípula querida, não chegou a ombrear, em termos de produção científica, com outras psicanalistas que se relacionaram com Freud, como a filha, Anna Freud, Ruth Mack Brunswick, Helene Deutsch e Melanie Klein. Mas basta saber que foi sobre ela que Freud lançou seu célebre Was will das weib? (O que quer uma mulher?) para entender a importância que Marie Bonaparte teve em sua vida. No campo da vida prática, as relações foram bem mais intensas. Em 1925, a princesa vai até Viena para se analisar com Freud. Ela estava deprimida e era frígida. Tentou até mesmo cirurgia no clitóris com o objetivo de ter prazer. Da análise, se tornou amiga de Freud e depois se formou como psicanalista. Foi fundadora da Sociedade Francesa de Psicanálise (os franceses, à época, apreciavam Freud como um representante da filosofia, e não da clínica) e ajudou com dinheiro a editar livros e revistas ligados a Freud. A mais decisiva ligação com o criador da psicanálise, no entanto, se deu quando a princesa se mobilizou para retirar Freud e a família de Viena, depois da anexação nazista. O romance pode ser dividido em duas partes. Na primeira, o leitor acompanha o esforço para convencer Freud da necessidade de sair de Viena frente à ameaça cada vez mais violenta à integridade dos judeus. Freud, além do mais, era conhecido como criador de uma ciência judaica, o que aumentava o desconforto de sua presença. A ameaça foi crescente, da expropriação de suas obras de arte até a prisão da filha. Marie Bonaparte precisa vencer as resistências do velho sábio, que acaba por aceitar dissolver a Sociedade de Psicanálise sediada em Viena e transferir o coração do movimento para Londres.
Divulgação
Consciente da importância da vida de Freud para a posteridade (expressão que o próprio Freud detestava), Marie Bonaparte compra a correspondência entre Freud e Fliess, um dos mais reveladores documentos do psicanalista. Freud resiste e quer as cartas destruídas. Marie Bonaparte argumenta que sua vida é tão importante como a de Goethe e por isso justifica a preservação da correspondência. “A posteridade”, os bisbilhoteiros que Freud odiava, agradecem até hoje a desobediência da princesa. Ao retratar esse momento marcante da besta nazista, o romancista recupera eventos históricos, mesclados com a liberdade da ficção. Assim, a célebre frase de Freud, “recomendando” a Gestapo, ajuda a compor o quadro ao mesmo tempo dramático do período, mas que não tira a argúcia e humor do velho cientista. A presença de Marie Bonaparte próxima à família do psicanalista, principalmente da filha dileta Anna, permite ainda acompanhar o clima doméstico da Viena da primeira metade do século 20, prestes a perder sua identidade em razão da anexação à Alemanha. A segunda parte é a mais reveladora e interessante. Num retorno aos anos 1920, Rousseau retoma os primeiros momentos do encontro entre Freud e Marie Bonaparte. Momento mais criativo (e fictício) é a descrição dos diálogos da psicanálise de Marie Bonaparte. A recriação das sessões é o artifício que permite ao autor, ao mesmo tempo, mostrar a mecânica da psicanálise e revelar a vida da princesa. O leitor fica conhecendo sua infância triste, seu casamento arranjado, a vida sexual vazia, a suspeita da homossexualidade do marido, a aproximação da psicanálise como profissão. O divã de Freud acolhe uma Marie Bonaparte sem reservas, que se revela em lembranças e sonhos. No entanto, o mais curioso é acompanhar, ainda que a recriação seja fantasiosa, os possíveis diálogos de Freud com a paciente, como se o leitor presenciasse uma cena impossível: ver Freud em ação. Curiosamente, o homem que depois se tornaria amigo da analisanda e discípula parece ter relutado em aceitá-la em tratamento. Depois de atendê-la pela primeira vez, Freud conversa com a filha Anna: “– Temo que essa mulher seja uma mundana e que se mostre muito invasora. Anna não contestou, simplesmente acrescentou: – É também uma mulher que conhece todo o mundo e que conta com apoios poderosos. Por que recusar a ajuda que ela pode dar à causa da psicanálise?”. História romanceada de uma amizade, Freud e a princesa Bonaparte é também uma apresentação da psicanálise a partir de dois de seus personagens. É possível que os especialistas recusem a recriação proposta pelo autor, mas, independentemente da validade teórica, a novela oferece um convite atraente para se conhecer melhor a história real que subjaz à invenção da ficção.

Livro FREUD E A PRINCESA BONAPARTE
De François-Olivier Rousseau
Editora Relume Dumará, 170 páginas

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