Onze instantâneos arcangélicos
ao Floriano Martins
1. Em cada dia que nasce o mundo transfigura-se. Os quatro reinos da Natureza renovam-se a cada momento. E onde as linhas se juntam e separam é que fica o fogo dos tempos. As paisagens do mundo do pintor são por vezes inomináveis, pois dependem da existência animal dos universos dentro de tudo, incluindo os infernos sociais. E por isso é que a noite e o dia são da mesma cor.
2. É do fundo do passado que as velhas obras nos olham, inquietas, aguardando a nossa palavra definitiva. A nossa existência está para além de Altamira, do Parténon, das tábuas de Kirsh e dos pomares de Belleville – mas é dentro do artista e das suas moradas ocasionais que a claridade se decanta. E por isso é que o dia e a noite não se misturam.
3. Estamos rodeados de presenças – de pessoas e de coisas, de palavras ora estranhas ora familiares. Que teremos de maravilhoso para lhes dizer? De revelador, como um sulco numa rocha do paleolítico? Eis que o pintor decide pôr-se ao trabalho: as portas abrem-se por um momento luminoso e, logo após, cerram-se de novo. O que ficou, pobre coisa multicolor, será o seu pão e o seu vinho interiores e secretos - e o artista mais não pode fazer que olhar com as mãos a tremer os continentes fabulosos que entreviu. E é então que percebe que noite e dia têm a mesma forma.
4. O corpo é um mundo incógnito que há que revelar na sua inocência de pedra e de madeira, mas só se não existem imagens virtuais na nossa mão e nos nossos olhos, O quotidiano do pintor é tão natural como uma cadeira, um gato ou um lápis – mas só se o que subjaz à sua busca são os sete continentes da fábula. O dia, a noite, a amargura dos momentos são lugares muitas vezes só de passagem.
5. Só da nossa experiência esquecida poderemos tirar a forma mais exacta, como se uma voz velada nos permitisse traçar num papel frases adormecidas.
6. É na calma fecunda do dia-a-dia, na frescura das horas profundas que o artista encontra os tempos em que a vida retém a cor das madrugadas sombrias e das noites longas e palpitantes de desconhecido. Os demónios não se movem, o pincel reteve-os como uma árvore ou um muro de quinta.
7. O mundo tal como se vê ou se sente pode caber num bolso, donde depois se solta como um lenço manchado pelos dedos do artista. Mas é preciso que se saiba mergulhar entre os destroços que as existências dos outros deixaram nas ruas.
8. O pintor anda pelas ruas e reconhece o traçado do passado próximo. As memórias existem em todas as direcções, são simples e belas, terríficas ou indiferentes – e a mão do artista treme e adeja como que para lembrar a si mesmo que a naturalidade é afinal a mãe dos segredos que aprendeu.
9. Nas ruas por onde o pintor se locomove há outras figuras que lhe são paralelas: constitui matéria de má-consciência pretender que o artista tenha algo a ver com todas elas. Se há gentes cuja estrutura lhe é próxima, outras há que apenas são matéria de vómito ou de incógnita.
10. A chuva acontece na realidade e na fantasia, o sol existe em reinos diversos, da ficção ao facto concreto. Mas o que é que isso significa? Assim como o lixo é o que subjaz à civilização, o que está por detrás da existência doméstica e social é aferido de minuto a minuto pela nossa consciência do sagrado. No fundo, os momentos absurdos reconstituem uma existência passada algures e plasticamente recriada. Como se o dia e a noite fôssem apenas matéria para quadros de género.
11. Os pintores nunca mentem, mesmo quando pensam o contrário. Os anos encarregam-se de os aniquilar – e então a verdade que acharam desaparece – ou de os confirmar – e então tudo se torna possível. Porque, afinal, vai-se pelo mundo com dois olhos, dois ouvidos, vários pares de mãos e muitos pés diferentes: indagando, reflectindo, comparando. No fim, o que se conseguiu de certeiro, de fértil? Apenas alguns segundos de inteira alegria, algumas imagens cercadas de escuridão. Mas esse pouco é o penhor da nossa realidade, aquilo que não se deixa aos corvos e aos girassóis. Tudo está, bem vistas as coisas, para além do que se julgou possuir, mas não será esse o sinal perfeito duma meditação como um pequeno sinal de cor numa tela destruída pelo fogo?
S. Cristóvão do Atalaião, Abril de 1987
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