sexta-feira, março 31, 2006

O ZEN E A ARTE DO HAI KAI - RODRIGO DE ALMEIDA SIQUEIRA


"O Sentido e a essência não se encontramem algum lugar atrás das coisas,senão em seu interior, no íntimo de todas elas." (Hermann Hesse)

O haikai é uma pequena poesia com métrica e molde orientais, surgida no século XVI, muito difundida no Japão e vem se espalhando por todo o mundo durante este século. Com fundamento na observação e contemplação enfatizando o sentimento natural e milenar de apreciação da natureza através da arte, sentimento este inerente a todo o ser humano. O mais tradicional poeta deste estilo é Matsuo Basho, monge Zen que aperfeiçoou o estilo e divulgou suas obras no final do século XVII.

Ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante.
- Matsuo Basho (1644-1694)
As vantagens sobre o estudo e disciplina na escrita e apreciação de haikais são infindáveis. Áreas da vida como percepção, concentração, escrita em geral, comunicação, relacionamentos, intuição, autoconhecimento, meditação, expressão e gosto estético são afetadas e desenvolvidas de forma surpreendente e enigmática por quem entende e participa do haikai.
Quietude --
O barulho do pássaro
Pisando em folhas secas.
- Ryushi

É uma forma pura de poesia que possui uma longa história que retoma a harmonia da filosofia espiritualista e o simbolismo taoísta dos místicos orientais e mestres zen-budistas, que expressam muito de seus pensamentos e ensinamentos na forma de mitos, símbolos, paradoxos e imagens poéticas. Isto se deve à tentativa de transcender a limitação imposta pela linguagem usual e pelo pensamento linear e científico, que trata a natureza com fórmulas e o próprio ser humano como máquina.
Já é primavera:
Uma colina sem nome
Sob a névoa da manhã.
- Matsuo Basho

Esta antiga forma poética permanece hoje revelando a sensibilidade dos poetas na busca da essência da natureza, no íntimo de todas as coisas de forma simples, sutil e artística. Seu pequeno tamanho está relacionado com a busca da unidade de forma compacta, com o foco e com o fato de que é mais fácil transmitir, lembrar e reviver rapidamente as impressões em poemas curtos.
Passo a passo
sobre a montanha no verão -
de repente o mar.
Issa (1763-1827)
O objetivo é capturar a essência do local numa poesia contemplativa com grande valorização nos contrastes, na transformação e dinâmica, nas cores, nas estações do ano, na união com a natureza, no momento passageiro versus eternidade (ruptura do contínuo) e no elemento de surpresa. O prazer está nos contrastes, nos jogos da luz e da sombra da realidade e dos sonhos e do misterio. Está justamente na interseção entre o que é conhecido e lógico e o desconhecido. A beleza está no equilíbrio das partes. A visão da eternidade e unidade que existe nas coisas e na natureza como um todo é encontrada na observação de cada um dos múltiplos momentos passageiros que a compõe.
Assim como o click de uma máquina fotográfica, deve registrar ou indicar um determinado momento, sensação, impressão ou drama de um fato específico da natureza. É aproximadamente a imagem de um flash ou resultado de uma descoberta ou insight cercada de pureza, simplicidade e sinceridade.
O haikai possui uma estrutura extremamente concisa, que se situa em torno de uma série bem definida de regras, mas nem sempre obedece à sua forma original, podendo ser levemente modificada e adaptada para diversas circunstâncias. Cada haikai pode ser escrito com um fator predominante em sua composição. Alguns dão mais importância ao conteúdo com a imagem de um momento da natureza. Outros escrevem com a intuição e inspiração no zen-budismo. Outros dão mais importância à métrica com 17 sílabas, usuais ou poéticas, distribuídas em 3 linhas com 5 sílabas na primeira linha, 7 na segunda e 5 na terceira (forma 5-7-5). Alguns buscam a rima ou então a utilização do kigo, palavra ou termo relativo à estação do ano.
O uso de figuras de linguagem como metáforas costuma ser evitado, pois pode levar a distrações e desvios no foco da imagem ou do tema central, por ser referente a um modo externo à cena, das idéias abstratas e não dos fatos e objetos verdadeiros do haikai.
Apesar do conteúdo muitas vezes lembrar o instantâneo e o efêmero, o haikai, ao ser escrito, exige do poeta paciência, força de vontade e trabalho para focalizar a idéia da imagem captada, de forma que esta possa ser colocada por escrito na forma correta, pois as palavras são poucas e cada uma tem o seu peso. A dificuldade, porém, é apenas aparente, pois a essência do haikai é a mesma da natureza e do ser humano. O trabalho está em percorrer o caminho entre o momento da idéia ou da imagem na mente e o trabalho final no papel, em palavras.
Tanto neste momento do ato criativo poético como no da criação científica, o que ocorre é um contato com o real, que é muito mais vasto do que tudo que é compreendido ou compreensível, com maiores dimensões, infinitas variedades e tal amplidão que a lógica linear nem sonharia em imaginar. Por ser um surto espontâneo de intuição que vem de dentro da pessoa (criador cientista ou poeta), este momento de descoberta não contém mecanismos racionais nem é explicável logicamente. A idéia é trabalhada posteriormente para tomar forma mais coerente ou apresentável e, ao se concentrar para aperfeiçoar um poema, o poeta experimenta o processo de lapidação de sua própria alma.
Dadas as regras, qualquer pessoa com percepção e vontade pode se tornar poeta. Assim, até as crianças que são tocadas pelo haikai podem fazê-lo com perfeição e ainda com vantagem de conter pureza, alegria, simplicidade e mostrar diretamente a imagem sem o uso de metáforas distantes, conforme o perfeito espírito do haikai. Quando é escrito por uma criança, ele está refletindo seu coração e sua mente em toda sua inocência e sinceridade. Reflete a rica imaginação da criança e mostra seu sentimento poético do mundo.
Nos concursos são reservados temas, colocações e programação especial para a categoria infantil, com resultados excelentes no mundo inteiro. A união dos povos e culturas pelo haikai é concretizada com a união das crianças no World Childrens Haiku Contest, um evento de escala global que leva poetas infantis do mundo inteiro a participarem e se reunirem todos os anos no Japão para o aperfeiçoamento da técnica e a troca de experiências.
É comum os haikais de crianças serem ilustrados com desenhos feitos por elas mesmas, dando ainda mais vida e registrando neste desenho a imagem que foi passada no poema escrito. O ensino é feito com a esperança de inspirá-las de maneira a mantê-las integradas com a natureza na criação dos haikais, que possuem a mensagem e o espírito de preservação do meio ambiente em forma de poesia.
Na sociedade de hoje, as pessoas perderam muito da capacidade de contemplação, que é descobrir poesia e encontrar mistérios nos simples acontecimentos ou objetos. Devemos estar atentos às pequenas surpresas que revelam novos pontos de vista e usar a poesia para ajudar a decifrar os eventos que estão sempre à nossa volta.
Na filosofia Zen, assim como no haikai, é necessário ter introspecção e análise mais profunda, fazendo-se perceber e descobrir curiosos e belos fatos naturais que de outra forma passariam despercebidos. Mais do que inspiração, é preciso meditação, esforço e, principalmente, percepção para a composição de um verdadeiro haikai. Participe e compartilhe!
Rodrigo de Almeida Siqueira foi vencedor do 9 Encontro Brasileiro de Haikai, realizado em outubro de 1994 em São Paulo.
FRASES E COMENTÁRIOS:
"Compartilhar um haikai é compartilhar um pedaço de sua experiência de vida e sensibilidade de maneira pessoal e muito especial. A leitura deles nos dá não somente momentos da experiência do escritor como também momentos de nos mesmos." - William Higginson
"Os poetas japoneses sabiam como expressar suas visões da realidade numa observação de tres linhas. Não se limitavam a simplesmente observa-la, mas, com uma calma sublime, procuravam o seu significado eterno. Quanto mais precisa a observação, tanto mais ela tende a ser única, e, portanto, mais próxima de ser uma verdadeira imagem. Como disse Dostoievski, com extraordinária precisão: A vida é mais fantástica do que qualquer fantasia." - Andrei Tarkovski, no livro "Esculpir o Tempo".

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