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Embora no pensamento sejamos muitas vezes solitários, a filosofia tem uma ligação intrínseca com a cidade. É um exercício urbano, destinado a melhorar o convívio dos homens, mesmo quando realizado longe dos outros. Venho escrevendo uma série de crônicas sobre a vida na cidade. Gosto bastante de Santa Cruz. Mas assim como meu amor-próprio não me impede de reconhecer meus muitos defeitos, o fato de gostar daqui não me impede de notar certos problemas. Digo isso para deixar claro que minhas invectivas contra esse ou aquele aspecto da nossa convivência pública tem como único propósito melhorar a vida na cidade, coisa que, por incrível que pareça, era, especialmente na antigüidade, parte do sentido dessa arte chamada filosofia.
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Meu exercício de pensamento de hoje não é uma crítica, é uma reflexão destinada àqueles que gostam da urbe, aqueles que, em algum sentido, reconhecem algum prazer na música urbana, nessa poesia bruta e suja que emana do concreto. Quem leu Bukowski ou Rubem Fonseca entende perfeitamente o que estou falando. A literatura e as perambulações ensinam que há um sentido em que o amontoado de prédios urbanos não é um corpo inerte; é um território povoado por fantasmas, por subjetividades diversas que vão desde o bêbado fracassado (com seu charme de perdedor) até a enigmática alma feminina sentada no canto do bar enfumaçado, com os cabelos desajeitados e a camisa um pouco aberta, deixando escapar, talvez, seu pérfido segredo. A poesia da noite também pode ser a poesia do dia, das pessoas correndo, das cortinas de ferro das lojas que cumprem seu ritual de abrir e fechar, o café simples e incógnito num boteco qualquer, o almoço diário no restaurante decadente, porém simpático e acolhedor.... É essa cidade mágica que anunciava com maciez e lirismo o nosso Mário Quintana e com melancolia, com gotas de chuva, Fernando Pessoa, em Lisboa. É claro que aqui, por sermos ainda uma cidade pequena ou bastante espalhada, esse sentido poético de centro urbano não pode ser sentido em todo seu calor. O que experimentamos bem é a experiência do bairro, que é um pouco diferente, mais familiar, menos desenraizadora e, infelizmente, menos anônima.
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Nunca fui uma criatura da noite. Minhas lições urbanas vêm da escola do amanhecer. Quando morava em São Paulo tomava café da manhã na padaria. A padaria é uma instituição paulistana, tem café, lanche, almoço, cerveja. É o melhor lugar para consumir qualquer coisa por lá e abre às 5 da manhã. Quando vim para cá, quis reviver essa experiência. Descobri o antigo Quiosque. Quando a saudade batia, eu tinha o lirismo dos garçons mais velhos, uma máquina registradora de manivela e um café com queijo quente, barato, simples e honesto. O Quiosque se modernizou. Hoje quando pedimos: “um queijo quente e um café”, o pedido vai parar numa tela de computador... não me acostumei... eu queria uma experiência mais crua e simples.
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Acabei descobrindo o Pic Nic. Tinha um café barato, gostoso e muitas outras coisas boas, como o chope gelado. Sentado, ali, folheando o jornal, eu sentia a velha e boa atmosfera de uma cidade grande com todo seu ultraje e amor, desde as crianças pedindo esmola, até a sutileza de estar acordando e renovando a vida longe de casa. Agora parece que o Pic Nic fechou e ficaremos órfãos de uma urbanidade acolhedora e pura. Sim, porque viver a cidade, viver a cidade, repito, não é sentar num bar cheio de estilo, arrumadinho, é estabelecer essa relação despretensiosa, leve ou arrastada de sentir-se em casa em qualquer canto, sem pensar tanto na ordenação ou eficiência do atendimento, se se está bem ou mal vestido, se a boca ou barba ficou melecada. Por que viver a cidade é como viver a vida: precisa de um pouco de falta de padrão, de avesso. Dizer essas coisas pode parecer estranho depois do que escrevi sobre a rodoviária. Mas atmosfera urbana, simplicidade e acolhimento, não têm nada a ver com sujeira e desleixo.
FONTE: Gazeta do Sul - Santa Cruz do Sul,RS,Brazil
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