30-03-08
A contemporânea pluralidade de estirpes e de tendências poéticas afere, de forma assaz assertiva, da plena maturidade da poesia caboverdiana.
Por: José Luis Hopffer C. de Almada
Conclusões
i
A contemporânea pluralidade de estirpes e de tendências poéticas afere, de forma assaz assertiva, da plena maturidade da poesia caboverdiana.
Essa maturidade evidencia-se, igualmente, no descomplexado auto-reconhecimento e na plena assunção da nossa identidade literária, que não mais carece de ver confirmada a sua legitimidade pela unicidade da constante e, por vezes, castradora referência a temáticas, a motivos e/ou a um dizer tidos por especificamente caboverdianos.
Construída a identidade literária caboverdiana, graças fundamentalmente ao labor dos nativistas, hesperitanos e outros novecentistas, dos claridosos das várias vagas e dos émulos da Nova Largada - fautores, em tempos históricos diferentes e com linguagens e estéticas diversificadas, da independência literária cabo-verdiana -, a questão da caboverdianidade explícita ou assumida nos textos literários, quer nas suas vertentes telúrica e combativa, quer nas suas vertentes existencialista, de indagação metafísica e lírica, vem-se tornando cada vez menos em problema ontológico para um número crescente de escritores e, especialmente, de poetas das ilhas e das diásporas caboverdianas.
Uma franja representativa dessa categoria, aqui evocada a título singularmente exemplificativo, quer ser primacialmente compreendida na sua infungível condição de criadores, no sentido de artífices da linguagem, cuja única missão - se, porventura, alguma missão lhes coubesse - teria como essencial fundamento ético e inexpurgável escopo estético a liberdade plena de criação e, no plano da factura da obra, consistiria na disseminação de máscaras da condição humana, quer ela se situe em Cabo Verde, na Diáspora, na "Macaronésia", no Antigo Egipto, ou nenhures no mundo ou na morte, desde que seja um algures da resplandecência do verbo.
Tal desiderato -aflorámo-lo já - levou à - por vezes tardia - introdução na poesia cultivada por caboverdianos de correntes literárias emergentes, há muito conhecidas ou até mesmo esgotadas no Ocidente, bem como à plena potenciação da língua e da arte da linguagem como instrumentos de universalização literária das criaturas caboverdianas.
Nos casos de João Vário, de um certo Arménio Vieira (designadamente o de "Poesia II”, “A Musa Breve de Silvenius” e "A Noite e a Lira" do livro Poemas e do primeiro e terceiro cadernos (“Canto das Graças” e “Mitografias”) do livro Mitografias), de Valentinous Velhinho, do José Luís Tavares de Agreste Matéria Mundo, do Danny Spínola de alguns cadernos de Infinito Delírio e de Rui Monteiro Leite a sintonia com as tendências dominantes do cânone ocidental da poesia metafísica, destelurizada ou místico-existencial, em cujo chão pátrio e os seus meandros de linguagem e atribulações da alma cresceram ou amadureceram como poetas, torna quase imperceptível ou, pelo menos, assaz residual, qualquer réstia textual de referencialidade caboverdiana explícita (quer seja de natureza telúrica ou outra).
A esses poetas podem ser acrescidos, sem maiores pruridos, o Mário Fonseca de momentos significativos da sua poesia em francês, o Oswaldo Osório dos poemas de meditação sobre o tempo, o amor e a condição humana, o Jorge Carlos Fonseca do cosmopolita deflagrar da palavra indomesticada bem como António da Névada (para só nomear autores de livros que nos parecem esteticamente mais depurados) -
Igualmente curiosa é a ausência na maioria dos poetas supra-referenciados de uma heteronímia, de uma pseudonímia ou de uma qualquer outra alteridade poética ou, tão só, de uma obra poética engendrada para uma referencialidade explícita e assumidamente caboverdiana, como são os casos de T. T. Tiofe em relação a João Vário bem assim da poesia dos demais poetas caboverdianos já referidos, nos quais escritas poéticas de várias facturas coexistem numa mesma obra ou na cronologia diversa das obras, por vezes bilingues, como nos casos de Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Mário Fonseca, Jorge Carlos Fonseca, Danny Spínola, José Luís Tavares ou António da Névada ou, de forma ainda mais singular, na obra literariamente binacional ou identitariamente híbrida dos luso-caboverdianos António Pedro Costa e Daniel Filipe.
É o que nos parece ocorrer, nomeadamente, na poesia de Valentinous Velhinho, sobretudo se nos abstrairmos dos raros poemas evocativos de Calheta, a terra natal do poeta, bem como da omnipresença de uma ambiência marcada pelo mar e pelo monte e de uma cultura impregnada de cristianismo que, por sua vez, envolve toda a poética deste autor e contamina a sua faceta universalizante e "contra-enraizadora".
ii
Salvo o crioulo, cuja tradição poética erudita remonta ao século XIX, e o francês, nos casos de Mário Fonseca - poeta que viveu o exílio, desde os anos 60, sobretudo em países francófonos, como o Marrocos, o Senegal, a Guiné-Conacry e a Mauritânia -, João Manuel Varela - o homem que carregou consigo o heterónimo João Vário, e que viveu e leccionou durante largos anos na Bélgica -, bem como do exemplo já antigo de José Lopes, que, eminente cultor da língua portuguesa, também se catapultou como poeta de língua francesa e inglesa e, até, em latim, tem sido o português a principal língua de sedimentação, de veiculação e de universalização da poesia caboverdiana.
Anote-se, neste contexto, que por ser e carregar em si, a mais forte marca identitária da caboverdianidade - da nossa crioulidade de continente e arquipélago culturais, como diria Gabriel Mariano -, o crioulo encerra inexploradas e inauditas potencialidades na nunca acabada obra da construção da literatura caboverdiana e na abordagem de uma condição humana universalizante a partir de uma sensibilidade islenha (mesmo se diasporizada).
Tal função é-lhe primacialmente devida muito por mor da circunstância de ela não ter que, necessariamente, se mostrar refém, prisioneira ou saturada por preocupações de telurismo temático ou por similares atavismos e reivindicações imediatistas de distinção identitária. Mesmo se não ignoramos que, no passado, a nossa língua materna serviu de essencial alicerce identitário e crucial esteio idiomático quer na construção de uma mátria crioula que complementava, e, por vezes, se contrapunha à pretensão monumental da poesia lusógrafa de alguns nativistas, quer da funda reivindicação de uma pátria peri-africana e meso-atlântica, como ilustrado na poesia e na demais escrita de Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Luís Romano, Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares, entre outros.
Certamente que a optimização dessas potencialidades deve caminhar, a par e passo, com a paulatina construção da língua caboverdiana - de uma ou mais das suas variantes insulares - como língua literária plenamente emancipada dos constrangimentos da oralitura, mesmo se perenemente tributária e revitalizadora do imenso tesouro linguístico-literário de que a oratura continua a ser o principal repositório.
Os poemas líricos que são as mornas de Eugénio Tavares bem como experiências recentes encetadas por alguns dos nossos poetas vivos, quer no campo da tradução, quer na criação original de lavra própria, apontam claramente nesse sentido.
No caso de Mário Fonseca, a radical opção pela escrita em francês e pela lição de poetas como Mallarmé, Apollinaire, Verlaine, Baudelaire, Rimbaud ou René Char, ainda que coexistente com uma faceta lusógrafa fortemente ancorada na poesia ocidental de intervenção social, na tradição poética luso-brasileira e nas correntes periféricas de postulação irritada da fraternidade, defendida por Aimé Césaire, não é alheia à situação de diglossia que se vivia e se vive em Cabo Verde.
É essa condição diglótica que é ilustrada nos seguintes versos:
« une fois initié
aux douceurs de la langue d’Eluard
il fallait, ô il fallait
que j’y plonge, moi aussi
que n’écrit que dans les langues des autres.
toute langue étant un circuit fermé
avec des portes d’entrée et des portes de sortie
Il est bon de pouvoir changer de prison
même si ce n’est que par la porte de service ».
A função do português na veiculação e na universalização da poesia caboverdiana vem sendo assumida quer mediante a privilegiada inserção da mesma poesia num cânone em língua portuguesa, no qual é predominantemente valorizado o amplo, minucioso e exaustivo domínio das técnicas disponíveis na tradição e nos movimentos e correntes dominantes na poesia contemporânea originariamente lusógrafas (ou vertidas em língua portuguesa por via da tradução das grandes referências da poesia universal), quer ainda mediante a utilização do português como meio linguístico de captação e de integração das experiências e das vivências telúricas e históricas do povo caboverdiano na literatura universal. É o que comprova o labor tanto dos nativistas e dos claridosos como de literatos mais recentes, da estirpe de um Gabriel Mariano, de um T. T. Tiofe, de um Corsino Fortes, de um Oswaldo Osório ou de um Arménio Vieira, ou ainda os casos mais actuais e igualmente fecundos (senão magistrais) fornecidos, por exemplo, pelos poemas de Nascimento de um Mundo, de Mário Lúcio Sousa, ou de Paraíso Apagado por um Trovão, de José Luís Tavares.
Nesse sentido são cada vez mais acrescidos os desafios aos poetas e escritores caboverdianos, inseridos que estão numa ambiência em que são extremamente fortes as solicitações identitárias veiculadas e corporizadas pelo telurismo, de invenção claridosa e recriação nova-largadista, a par da tentação de diluição e dispersão nas águas (des)identitárias que banham as ilhas da diáspora e as suas diferentes máscaras.
Por isso, esses poetas são, amiúde, obrigados a traduzir-se e a traduzir a condição humana inerente ao caboverdiano das ilhas e diásporas, tornando-se, assim, de um ou outro modo, heterónimos de si próprios.
Lisboa, 22 de Março/ Agosto/ Setembro de 2006
(revisto em Março de 2008)
José Luis Hopffer C. Almada
josehopffer@yahoo.com.br
joseluishopffer@gmail.com
Nota do autor:
Constitui o presente texto uma profunda reformulação de parte das versões originais publicadas com diferentes subtítulos sob o título genérico “Estes poetas são meus” e das quais se destacam uma primeira, publicada no suplemento "Kriolidadi" do jornal "A semana" e nas revistas
“Lusografias” e “Mea Libra”, e aquela, de intenção panorâmica do conjunto da moderna poesia caboverdiana, incluída no livro “Cabo Verde - Trinta Anos de Cultura”.
A presente versão foi inicialmente elaborada - ainda em vida de João Manuel Varela - para servir de introdução a uma antologia lusógrafa de dez poetas vivos organizado, em 2006, por José Luís Tavares para a Casa Fernando Pessoa.
Na sequência da reformulação editorial do projecto antológico inicial, agora abrangente de dez poetas vivos mais João Vário, de feição bilingue e por conta do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, de Cabo Verde, foi também reformulado o presente texto, pensado não mais como introdução à antologia da responsabilidade de José Luís Tavares, mas como texto plenamente autónomo e por isso também incidente sobre poetas caboverdianos (ou a sua poesia de língua crioula e francesa) não integrantes da selecção antológica acima referida, como são os casos de T. T. Tiofe, Kaká Barboza, Danny Spínola, Rui Monteiro Leite e Valentinous Velhinho (neste último caso por expressa recusa do autor).
Versões e excertos do presente texto, designadamente os relativos aos poetas Arménio Vieira e Corsino Fortes, foram publicados n’ a revista do jornal a semana, na revista online da Sociedade de Língua Portuguesa bem como no asemanaonline.
Um pequeno excerto de uma primeira versão do presente texto foi recentemente publicado na revista brasileira “Confraria do Vento”, conjuntamente com poemas de João Vário, Arménio Vieira, Corsino Fortes, Oswaldo Osório, Mário Lúcio Sousa, António da Nevada, Filinto Elísio Correia e Silva e José Luís Hopffer Almada, todos seleccionados por José Luís Tavares. A esses trabalhos acrescem poemas do próprio José Luiz Tavares, publicados na edição anterior da mesma revista.
FONTE: A Semana online - Portugal
Conclusões
i
A contemporânea pluralidade de estirpes e de tendências poéticas afere, de forma assaz assertiva, da plena maturidade da poesia caboverdiana.
Essa maturidade evidencia-se, igualmente, no descomplexado auto-reconhecimento e na plena assunção da nossa identidade literária, que não mais carece de ver confirmada a sua legitimidade pela unicidade da constante e, por vezes, castradora referência a temáticas, a motivos e/ou a um dizer tidos por especificamente caboverdianos.
Construída a identidade literária caboverdiana, graças fundamentalmente ao labor dos nativistas, hesperitanos e outros novecentistas, dos claridosos das várias vagas e dos émulos da Nova Largada - fautores, em tempos históricos diferentes e com linguagens e estéticas diversificadas, da independência literária cabo-verdiana -, a questão da caboverdianidade explícita ou assumida nos textos literários, quer nas suas vertentes telúrica e combativa, quer nas suas vertentes existencialista, de indagação metafísica e lírica, vem-se tornando cada vez menos em problema ontológico para um número crescente de escritores e, especialmente, de poetas das ilhas e das diásporas caboverdianas.
Uma franja representativa dessa categoria, aqui evocada a título singularmente exemplificativo, quer ser primacialmente compreendida na sua infungível condição de criadores, no sentido de artífices da linguagem, cuja única missão - se, porventura, alguma missão lhes coubesse - teria como essencial fundamento ético e inexpurgável escopo estético a liberdade plena de criação e, no plano da factura da obra, consistiria na disseminação de máscaras da condição humana, quer ela se situe em Cabo Verde, na Diáspora, na "Macaronésia", no Antigo Egipto, ou nenhures no mundo ou na morte, desde que seja um algures da resplandecência do verbo.
Tal desiderato -aflorámo-lo já - levou à - por vezes tardia - introdução na poesia cultivada por caboverdianos de correntes literárias emergentes, há muito conhecidas ou até mesmo esgotadas no Ocidente, bem como à plena potenciação da língua e da arte da linguagem como instrumentos de universalização literária das criaturas caboverdianas.
Nos casos de João Vário, de um certo Arménio Vieira (designadamente o de "Poesia II”, “A Musa Breve de Silvenius” e "A Noite e a Lira" do livro Poemas e do primeiro e terceiro cadernos (“Canto das Graças” e “Mitografias”) do livro Mitografias), de Valentinous Velhinho, do José Luís Tavares de Agreste Matéria Mundo, do Danny Spínola de alguns cadernos de Infinito Delírio e de Rui Monteiro Leite a sintonia com as tendências dominantes do cânone ocidental da poesia metafísica, destelurizada ou místico-existencial, em cujo chão pátrio e os seus meandros de linguagem e atribulações da alma cresceram ou amadureceram como poetas, torna quase imperceptível ou, pelo menos, assaz residual, qualquer réstia textual de referencialidade caboverdiana explícita (quer seja de natureza telúrica ou outra).
A esses poetas podem ser acrescidos, sem maiores pruridos, o Mário Fonseca de momentos significativos da sua poesia em francês, o Oswaldo Osório dos poemas de meditação sobre o tempo, o amor e a condição humana, o Jorge Carlos Fonseca do cosmopolita deflagrar da palavra indomesticada bem como António da Névada (para só nomear autores de livros que nos parecem esteticamente mais depurados) -
Igualmente curiosa é a ausência na maioria dos poetas supra-referenciados de uma heteronímia, de uma pseudonímia ou de uma qualquer outra alteridade poética ou, tão só, de uma obra poética engendrada para uma referencialidade explícita e assumidamente caboverdiana, como são os casos de T. T. Tiofe em relação a João Vário bem assim da poesia dos demais poetas caboverdianos já referidos, nos quais escritas poéticas de várias facturas coexistem numa mesma obra ou na cronologia diversa das obras, por vezes bilingues, como nos casos de Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Mário Fonseca, Jorge Carlos Fonseca, Danny Spínola, José Luís Tavares ou António da Névada ou, de forma ainda mais singular, na obra literariamente binacional ou identitariamente híbrida dos luso-caboverdianos António Pedro Costa e Daniel Filipe.
É o que nos parece ocorrer, nomeadamente, na poesia de Valentinous Velhinho, sobretudo se nos abstrairmos dos raros poemas evocativos de Calheta, a terra natal do poeta, bem como da omnipresença de uma ambiência marcada pelo mar e pelo monte e de uma cultura impregnada de cristianismo que, por sua vez, envolve toda a poética deste autor e contamina a sua faceta universalizante e "contra-enraizadora".
ii
Salvo o crioulo, cuja tradição poética erudita remonta ao século XIX, e o francês, nos casos de Mário Fonseca - poeta que viveu o exílio, desde os anos 60, sobretudo em países francófonos, como o Marrocos, o Senegal, a Guiné-Conacry e a Mauritânia -, João Manuel Varela - o homem que carregou consigo o heterónimo João Vário, e que viveu e leccionou durante largos anos na Bélgica -, bem como do exemplo já antigo de José Lopes, que, eminente cultor da língua portuguesa, também se catapultou como poeta de língua francesa e inglesa e, até, em latim, tem sido o português a principal língua de sedimentação, de veiculação e de universalização da poesia caboverdiana.
Anote-se, neste contexto, que por ser e carregar em si, a mais forte marca identitária da caboverdianidade - da nossa crioulidade de continente e arquipélago culturais, como diria Gabriel Mariano -, o crioulo encerra inexploradas e inauditas potencialidades na nunca acabada obra da construção da literatura caboverdiana e na abordagem de uma condição humana universalizante a partir de uma sensibilidade islenha (mesmo se diasporizada).
Tal função é-lhe primacialmente devida muito por mor da circunstância de ela não ter que, necessariamente, se mostrar refém, prisioneira ou saturada por preocupações de telurismo temático ou por similares atavismos e reivindicações imediatistas de distinção identitária. Mesmo se não ignoramos que, no passado, a nossa língua materna serviu de essencial alicerce identitário e crucial esteio idiomático quer na construção de uma mátria crioula que complementava, e, por vezes, se contrapunha à pretensão monumental da poesia lusógrafa de alguns nativistas, quer da funda reivindicação de uma pátria peri-africana e meso-atlântica, como ilustrado na poesia e na demais escrita de Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Luís Romano, Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares, entre outros.
Certamente que a optimização dessas potencialidades deve caminhar, a par e passo, com a paulatina construção da língua caboverdiana - de uma ou mais das suas variantes insulares - como língua literária plenamente emancipada dos constrangimentos da oralitura, mesmo se perenemente tributária e revitalizadora do imenso tesouro linguístico-literário de que a oratura continua a ser o principal repositório.
Os poemas líricos que são as mornas de Eugénio Tavares bem como experiências recentes encetadas por alguns dos nossos poetas vivos, quer no campo da tradução, quer na criação original de lavra própria, apontam claramente nesse sentido.
No caso de Mário Fonseca, a radical opção pela escrita em francês e pela lição de poetas como Mallarmé, Apollinaire, Verlaine, Baudelaire, Rimbaud ou René Char, ainda que coexistente com uma faceta lusógrafa fortemente ancorada na poesia ocidental de intervenção social, na tradição poética luso-brasileira e nas correntes periféricas de postulação irritada da fraternidade, defendida por Aimé Césaire, não é alheia à situação de diglossia que se vivia e se vive em Cabo Verde.
É essa condição diglótica que é ilustrada nos seguintes versos:
« une fois initié
aux douceurs de la langue d’Eluard
il fallait, ô il fallait
que j’y plonge, moi aussi
que n’écrit que dans les langues des autres.
toute langue étant un circuit fermé
avec des portes d’entrée et des portes de sortie
Il est bon de pouvoir changer de prison
même si ce n’est que par la porte de service ».
A função do português na veiculação e na universalização da poesia caboverdiana vem sendo assumida quer mediante a privilegiada inserção da mesma poesia num cânone em língua portuguesa, no qual é predominantemente valorizado o amplo, minucioso e exaustivo domínio das técnicas disponíveis na tradição e nos movimentos e correntes dominantes na poesia contemporânea originariamente lusógrafas (ou vertidas em língua portuguesa por via da tradução das grandes referências da poesia universal), quer ainda mediante a utilização do português como meio linguístico de captação e de integração das experiências e das vivências telúricas e históricas do povo caboverdiano na literatura universal. É o que comprova o labor tanto dos nativistas e dos claridosos como de literatos mais recentes, da estirpe de um Gabriel Mariano, de um T. T. Tiofe, de um Corsino Fortes, de um Oswaldo Osório ou de um Arménio Vieira, ou ainda os casos mais actuais e igualmente fecundos (senão magistrais) fornecidos, por exemplo, pelos poemas de Nascimento de um Mundo, de Mário Lúcio Sousa, ou de Paraíso Apagado por um Trovão, de José Luís Tavares.
Nesse sentido são cada vez mais acrescidos os desafios aos poetas e escritores caboverdianos, inseridos que estão numa ambiência em que são extremamente fortes as solicitações identitárias veiculadas e corporizadas pelo telurismo, de invenção claridosa e recriação nova-largadista, a par da tentação de diluição e dispersão nas águas (des)identitárias que banham as ilhas da diáspora e as suas diferentes máscaras.
Por isso, esses poetas são, amiúde, obrigados a traduzir-se e a traduzir a condição humana inerente ao caboverdiano das ilhas e diásporas, tornando-se, assim, de um ou outro modo, heterónimos de si próprios.
Lisboa, 22 de Março/ Agosto/ Setembro de 2006
(revisto em Março de 2008)
José Luis Hopffer C. Almada
josehopffer@yahoo.com.br
joseluishopffer@gmail.com
Nota do autor:
Constitui o presente texto uma profunda reformulação de parte das versões originais publicadas com diferentes subtítulos sob o título genérico “Estes poetas são meus” e das quais se destacam uma primeira, publicada no suplemento "Kriolidadi" do jornal "A semana" e nas revistas
“Lusografias” e “Mea Libra”, e aquela, de intenção panorâmica do conjunto da moderna poesia caboverdiana, incluída no livro “Cabo Verde - Trinta Anos de Cultura”.
A presente versão foi inicialmente elaborada - ainda em vida de João Manuel Varela - para servir de introdução a uma antologia lusógrafa de dez poetas vivos organizado, em 2006, por José Luís Tavares para a Casa Fernando Pessoa.
Na sequência da reformulação editorial do projecto antológico inicial, agora abrangente de dez poetas vivos mais João Vário, de feição bilingue e por conta do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, de Cabo Verde, foi também reformulado o presente texto, pensado não mais como introdução à antologia da responsabilidade de José Luís Tavares, mas como texto plenamente autónomo e por isso também incidente sobre poetas caboverdianos (ou a sua poesia de língua crioula e francesa) não integrantes da selecção antológica acima referida, como são os casos de T. T. Tiofe, Kaká Barboza, Danny Spínola, Rui Monteiro Leite e Valentinous Velhinho (neste último caso por expressa recusa do autor).
Versões e excertos do presente texto, designadamente os relativos aos poetas Arménio Vieira e Corsino Fortes, foram publicados n’ a revista do jornal a semana, na revista online da Sociedade de Língua Portuguesa bem como no asemanaonline.
Um pequeno excerto de uma primeira versão do presente texto foi recentemente publicado na revista brasileira “Confraria do Vento”, conjuntamente com poemas de João Vário, Arménio Vieira, Corsino Fortes, Oswaldo Osório, Mário Lúcio Sousa, António da Nevada, Filinto Elísio Correia e Silva e José Luís Hopffer Almada, todos seleccionados por José Luís Tavares. A esses trabalhos acrescem poemas do próprio José Luiz Tavares, publicados na edição anterior da mesma revista.
FONTE: A Semana online - Portugal
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