ONÉSIMO CRONISTA E FICCIONISTA
Miguel Real
Lendo as crónicas e os contos de Onésimo, sempre mesclados de ironia, conflui do fundo da memória as “velhas” histórias (ou “estórias”) narradas à lareira por adultos experimentados e lúcidos. Vividos, transmitem eles à comunidade, sem moralismos sentenciais, o resultado da sua vida cheia, ora feliz, ora dramática, mas sempre carregada de futuro. Por vezes, interessa menos o conteúdo da história e mais a toada por que é contada, sintetizando o reflexo condensado de uma experiência de vida. Neste sentido, como o leitor pode comprovar lendo este volume de textos há muito esgotados de Onésimo, a ficção deste autor consiste menos na descrição de retratos realistas de ambiente ou em detecção de meandros psicológicos, menos ainda em invenção de personalidades metamorfoseadas em personagens, e mais na exploração de “condensados de vida” empírica que, sem deixar de provocar um efeito moral, não visa outro alcance que o mais antigo e genuíno efeito romanesco: a de contar uma “boa” e “bela” história, assumida esteticamente como retalho e síntese de vida.
Modéstia de Onésimo? Não, apenas fidelidade ao mais antigo e visceral destino da crónica e do conto: o de narrar uma história. Neste sentido, desconstrutivismo, psicologismo, estruturalismo, neo-modernismo e toda a parafernália de –ismos narrativos falecem à beira do uso encantado da locução “era uma vez…”, voluntariamente privilegiada nos seus livros de ficção.
Em segundo lugar, se Onésimo ficciona a partir de uma linguagem comum, não privilegia, porém, como constitutivos dos seus contos e das suas crónicas, nem uma linguagem popular, de massas, nem temas populares. De afastar, portanto, como caracterização da sua ficção, o realismo folhetinesco e telenovelesco pertinente à maioria dos romances ora saídos em Portugal. A funda cultura literária de Onésimo não lhe permite a promiscuidade semântica redutora que faz equivaler a literatura a um albergue espanhol onde tudo e todos cabem. Leia-se o conto/crónica “Jardim dos lazeres da cultura” (pp. 35 – 38) e temos o Onésimo ficcional por inteiro. Em Aventuras de um Nabogador, faz referência, não a um qualquer “barbudo”, mas a um saído de uma “página de Hemingway”, autor este que, aparte a ironia e a mordacidade de Onésimo, pode ser tomado, de certa maneira, como um dos modelos da sua escrita: “Um barbudo louro, saltando de uma página de Hemingway, ouviu as nossas demandas” , frase que sintetiza em perfeição o estilo dos textos ficcionais do autor.
De facto, é nele constante a utilização da linguagem corrente (tome-se como exemplo “Passaportes e retratos”, pp. 29 – 33), sem o pretenso aformosear romântico-kitshiano da frase, actual moda entre escritores de grande sucesso de vendas, e muito menos o academismo que Onésimo evidencia nos seus ensaios historiográficos e filosóficos. No horizonte de um estilo realista, o léxico de Onésimo, composto de vocabulário comum, evidencia, porém, um background cultural que na frase em questão se torna manifesto pela referência a Hemingway e, sobretudo, pela utilização da palavra “demanda”, no antigo e duplo sentido de “pedido” e de “protesto”. Assim, se o conteúdo da ficção de Onésimo é indubitavelmente realista, de acordo com a sua filosofia, não deixa de ser, quanto à forma, culturalista - no justo sentido de unificação dos dados empíricos no seio de uma forma que privilegia as referências intertextuais de carácter cultural (literatura, história, sociologia, ética…, cf, como exemplo “Juízos de fora”, pp. 39 - 42). Realista na atitude, em filosofia; realista no estilo, em literatura; culturalista na análise de temas de ciências sociais; culturalista no estabelecimento da forma literária dos seus escritos ficcionais – eis, em síntese, Onésimo como um todo, desde que se acrescente, quanto ao estilo, o jogo irónico, profundamente irónico.
Com efeito, em todos os seus textos de ficção – como uma evidência - é recorrente a referência a episódios culturais, a títulos de livros ou nomes de autores da cultura portuguesa, europeia e americana. É justamente este universo cultural, pelo qual o autor armadilha as palavras, que constitui a diferença específica do realismo onesimiano, distinguindo-o, por exemplo, do realismo de José Rodrigues Miguéis ou do de José Cardoso Pires, ou, ainda, do realismo neo-romântico de Inês Pedrosa. Onésimo brinca falando (escrevendo) a sério – percorra-se o índice deste livro e atente-se nos títulos – todos! – e veja-se como transbordam de referências histórico-culturais e, sobretudo, de ironia cultural.
Em terceiro lugar, sublinhe-se a ironia como trave-mestra constitutiva do estilo de Onésimo (a começar pelos títulos dos seus livros: Que nome é esse, Ó Nézimo?, Ah! Mònim dum Corisco, Livro-me do Desassossego e Aventuras de um Nabogador & Outras estórias-em-sanduíche). Que história destes livros não se encontra recheada do efeito irónico? Qual delas não desperta o sorriso satírico? A mordacidade? Quem não abre os lábios em sorriso quando lê “Eu falo os calções assinalados” (pp. 259 – 263) ou “Do exercício de cada dia nos livrai hoje” (pp. 345 – 349).
É, porém, a ironia estilística de Onésimo parente da de Bocage, Eça ou O’Neill? Não. Estes três autores levaram a vida a sério e pela sua obra (parte dela irónica e satírica) intentaram mudar Portugal, Bocage afrancesando-o iluministicamente, Eça europeizando-o e O’Neill criticando-o para o “normalizar” (no sentido que este conceito tem em Eduardo Lourenço: tornar Portugal um país igual aos outros). A ironia de Onésimo, diferentemente, possui um carácter ético e aproxima-se da de algumas personagens de Gil Vicente: trata-se da ironia estóico-epicurista de quem não se leva excessivamente a sério, de quem possui a lucidez de saber que difícil é já mudar-se a si próprio quanto mais endireitar uma comunidade torta há quatrocentos anos; ao fim e ao cabo, consiste na ironia filosófica de quem sabe que tudo está mal porque tudo está bem e tudo está bem porque tudo está mal, aceitando como “natural” as imperfeições humanas e as suas consequências. Não é, valha a verdade, a ironia dominante nos escritores portugueses – que sempre têm praticado uma ironia “séria”, chamemos-lhe assim -, mas a dos filósofos, de Sócrates a Kierkegaard passando por Montaigne e Pascal (este com uma componente trágica). Porém, não é impunemente que se escrevem crónicas e contos com a carga pesada sobre os ombros de um curso e um doutoramento em Filosofia, como é ilustrado pelos inúmeros exemplos das crónicas “O Europeu em trinta dias”, “A dupla vilania” e seguintes.
Assim, em síntese: léxico comum, de tom realista e horizonte cultural, atravessado de uma dimensão irónica (que desdramatiza situações) – eis o estilo deste novo livro de Onésimo . Mas não é Onésimo, ele próprio, assim mesmo: um homem comum, realista, carregado de cultura e sempre a contar “estórias” exemplares, a maioria irónicas?
Dividido em cinco partes (Portugal, Açores, Portugal – América, América e Autor), o livro ora editado pelo Clube do Autor constitui um perfeito retrato do estilo e da mundividência literária e jornalística do autor. Onésimo é, simultaneamente, açoriano, português, europeu e americano, tendo recebido forte influência de quatro diferentes padrões culturais, mentalidades sociais e mundividências éticas, nenhum rejeitando e todos integrando, porventura privilegiando maximamente os padrões açoriano e americano. Desde 1975 que, contra o tragidismo e a lamúria nacionais, Onésimo dá voz a esta doce divisão mental, esta bem conseguida separação-união entre as duas partes mais importantes da sua existência através de crónicas sérias e irónicas, contos e peças de teatro. Do mesmo modo, como se torna bem patente pela leitura deste livro, Onésimo dissolve os limites estéticos entre crónica e conto. Com efeito, segundo um horizonte de fundo realista, as crónicas (narrando uma pequena estória humorada) poderiam converter-se em contos e estes, simplificados, em crónicas ficcionadas. Porventura, a melhor designação para a sua prática literária de conto-crónica ou crónica-conto seria a de “estória”, termo, aliás, que o autor usa na apresentação do seu livro de contos «Sapa»teia Americana, de 1983. Antes, em 1975, na apresentação no seu primeiro livro de crónicas (e contos), Da Vida Quotidiana na L(Usa)lândia , Onésimo, sempre animado por um fundo realista, advertira ser inseparável a literatura e a vida concreta, existencial, quotidiana. É justamente o que o leitor experimentará lendo o livro que ora tem entre as mãos: assistirá a episódios da vida quotidiana transformados em pequenos contos-crónicas, atravessados sempre pelo sal do humor e da ironia. Do mesmo modo, João de Melo, prefaciador de «Sapa»teia Americana, sintetiza muito lucidamente o teor das crónicas-contos de Onésimo como “o intenso, o profundo e mais autêntico repositório literário da vida, do pensar e do ser dos açorianos da América de hoje, sendo eles, ainda e sempre, os homens da Ilha” . Esta vinculação umbilical à realidade vivida por parte de Onésimo-autor de ficção encontra continuação e comprovação, 12 anos após a publicação do primeiro livro sobre a “L(Usa)lândia”, quando refere, em A L(Usa)lândia. A Décima Ilha, de 1987, que os seus textos imediatos, escritos para serem publicados em jornais, são “sobretudo textos críticos e de intervenção em que se recorre por vezes a efeitos literários para obter mais eficaz actuação sobre o leitor” . É justamente neste sentido que, sem esforço, espontaneamente, uma crónica de Onésimo poder ser lida como um conto e um conto como uma crónica. Faça a experiência, caro leitor, e de certeza chegará a esta conclusão. E não se esqueça do que o autor referiu, “textos críticos e de intervenção”, ou seja, sobre o fundo da ironia espreita sempre a denúncia de aleijões ou perversões sociais.
Dando expressão à divisão dos capítulos deste livro, o autor, nos seus textos de ficção, recria, de um modo realisticamente admirável, a vivência quotidiana americana dos açorianos, abrindo lugar à consciencialização da existência de uma nova cultura de raiz açoriana fortemente enformada pelo estilo de vida americano, que designou, no seu habitual estilo irónico, em 1983, por “L(Usa)” e, em 1987, por a “Décima Ilha”, neste último caso jogando com o mito nascido de uma vaga lenda açoriana, de que Vitorino Nemésio faz eco em Mau Tempo no Canal, da existência de uma outra ilha do arquipélago, a “décima”, reino de avantajada prosperidade e felicidade. Neste último volume de “L(USA)lândia”, Onésimo elucida ironicamente na primeira página: “A (L(Usa)lândia é uma porção de Portugal rodeada de América por todos os lados”. Assim, a “L(Usa)lândia” constitui-se como a “ilha” onde decorrem os contos da nova “sapateia” – “sapateia”, não já açoriana, mas americana. Nestes contos nasce um novo “herói” da literatura portuguesa: o “herói” açoriano, não já o baleeiro épico-popular de Vitorino Nemésio e Dias de Melo, mas o emigrante que “mourejando, ocupando os lugares mais baixos da escala social” , se vai lentamente integrando, acumulando algum capital, possuindo os Açores no coração e a América no raciocínio, consciencializando lucidamente que os seus filhos não se adaptariam já à rotina de vida genuinamente açoriana. É este o novo “herói” da ficção onesimiana, um herói anónimo, que o autor retrata nos seus contos-crónicas e em peças de teatro, como, por exemplo, Ah! Mònim dum Corisco , de 1991.
Assim, no que à ficção diz respeito, a singularidade da escrita de Onésimo face à totalidade da literatura portuguesa contemporânea, reside, para além do seu estilo concentradamente irónico, com paralelo apenas na ficção de Mário de Carvalho e Rui Zink, na descrição crítica e satírica da realidade social criada e designada pelo autor como “L(USA)lândia”, domínio literário açoriano-americano.
É, porém, necessário aprofundarmos o estatuto cultural da crónica e da ficção em Onésimo, já que ela possui uma singularidade portuguesa muito, muito específica. Constituem-se ambas como a outra face (ridente e optimista) do pensador rigoroso e escrupuloso nas teses defendidas e citações feitas.
Com efeito, todos os pensadores importantes são homens dualmente divididos, quando não pluralmente divididos. Faz parte da sua natureza mental afirmar e duvidar do afirmado, criar o novo e admirar o antigo, separando em conflitualidade o passado do presente, romper consensos e depois reinventá-los. Por isso, a condição de pensador é habitualmente trágica, que é o elemento próprio da divisão dual. Porém, paradoxalmente, Onésimo, exprimindo um novo e democrático espírito do arquipélago, faz da ironia humorística a impensável ponte entre as duas margens da natureza trágica, cujo conteúdo, no seu caso, se constitui como a ponte entre as duas margens de dois mundos geográficos (Europa – América), culturais (cultura açoriana e continental da década de 60 e cosmopolitismo universal americano a partir da década de 70) e teoréticos (filosofia e literatura portuguesas e filosofia da linguagem neo-pragmática anglo-saxónica) em que se divide a sua existência.
De facto, constata-se, pelo conteúdo da sua obra, que a divisão dos capítulos deste livro evidencia com muita clareza, ser Onésimo um homem dividido, do ponto de vista sentimental, entre a América da sua realização e o Portugal da sua formação, o laicismo profano e festivo da sua escrita e a memória do absoluto anteriano e enesiano da sua sensibilidade juvenil, entre o lastro da cultura portuguesa melancólica, séria, protocolar e preconceituosa, e o pragmatismo e igualitarismo americanos, e, do ponto de vista racional, entre a escrita académica dos seus trabalhos e a escrita jornalística por que intervém socialmente no presente da História; mas também, a um nível mais profundo, entre o projecto modernista iluminista europeu, de que defende a necessidade da sua definitiva consumação, e a concretização perversa deste pelo poderio imperial americano. Numa palavra, entre uma escrita intemporal, de terceira pessoa, teorética, racional, escrupulosamente rigorosa, e uma escrita sensível e sentimental, evidenciando uma prática existencial e testemunhante, esta dificilmente reduzida a elementos de sintaxe universal e abstracta do pensamento.
Se houve dois distintos Anteros (no lúcido dizer de António Sérgio e Joaquim de Carvalho), se Nemésio matou a filosofia crítica para fazer literatura (no significativo dizer de Tomás da Rosa) e se José Enes, mestre de Onésimo, matou a literatura no ano de 1964 para se dedicar à filosofia, todos ostentando um espírito trágico dual, Onésimo supera idêntico vazio existencial e ontológico através da ironia, não eliminando nenhuma das “margens” (a filosofia e a literatura), com ambas convivendo sem drama. A ironia, o motejo, a zombaria, o remoque, de que polvilha as suas crónicas, servem-lhe saudável e estilisticamente como ponte entre os dois mundos geográficos, culturais e teoréticos, isto é, o académico e o profano, o americano e o açoriano-português, o mundo nefelibata dos congressos de especialistas e o mundo temporalizado das redacções de jornais. Trágico Antero (na sábia visão de Eduardo Lourenço), trágico Teófilo Braga, sistematizador do absoluto em forma de filosofia positivista, trágico Nemésio em Mau Tempo no Canal, condenando Margarida à insignificância existencial, trágico Enes, corrector de um mundo tomista ontologicamente dual (o sensível e o intelectual, que pelo intuito intenta unificar); Onésimo, em compensação, quebrando a eterna mensagem trágico-melancólica por que os Açores se têm integrado no todo da cultura portuguesa, ostenta essencialmente uma postura irónica de cariz contextualista na reflexão e pragmatista na acção. Por isso, à obra de Onésimo escapa-lhe o estilo e o comportamento trágico como apropriação da realidade em ordem a um absoluto (Deus, Verdade, Bem, Belo, Ser…), substituindo-os pelo estilo irónico, mecanismo mental que multiplica a realidade em níveis hierárquicos, cada um com o seu estatuto, as suas regras, os seus fins – posição filosófica de Onésimo. O trágico exige o Tudo ou o Todo; o irónico sujeita-se à Parte, ao Grau. O trágico pensa-se em termos de destino, de Obra, de perfeição; o irónico em termos de vida existencial, sabendo-lhe toda a obra a imperfeição, porque temporalmente enraizada. O trágico pensa a História como um bloco uno; o irónico compara momentos da História, civilizações, a sua atitude é sempre comparatista, mesmo quando emite juízos meta-históricos – posição de Onésimo. Rápido, o trágico desdobra-se em fatalismo, determinismo, crença cega em uma transcendência (Deus, a Razão, a História, o Progresso, a Classe Operária…). Em Onésimo, afastado o elemento trágico, reina uma ironia natural que raramente se transcende em sátira intencional e muito menos em jocosidade (a sátira é, não raro, o malévolo da ironia, e o jocoso a sua graçola ingénua). Diferentemente, enquanto ponte entre os dois mundos de Onésimo, a ironia transfigura-se num humor benévolo, um humor que, relativizando os graus de realidade, erigindo o pragmatismo em conduta, promotor da concórdia, empurra pacificamente o mundo para a frente.
Não existe melhor exemplo da ironia como postura sentimental e racional de Onésimo que o remate da história narrada na crónica “Eu, Kofi Anão”: “ O David, por exemplo, ia para uma reunião pró-Israel. A Sahida ia também a outra. Pró-Árabe. Nenhum deles tinha carro. Dei boleia aos dois” (Livro-me do Desassossego. Dia-crónicas, p. 45).
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Do Autor MIGUEL REAL, escreveram:
1.Bárbara Guimarães, in Páginas Soltas.
Ensaísta, romancista, dramaturgo, Miguel Real transporta sempre os seus leitores para o coração de ideias, actos, obras e dilemas que determinaram a vida dos homens e das sociedades, e que são, ao fim e ao cabo, os que moldaram de alguma forma a nossa própria sociedade, tal como a conhecemos.»
2.Fernando Venâncio in revista Actual, em setembro de 2004
«Miguel Real sabe reconstituir ambientes, com o sumo mérito de nunca deixar a sua, evidente, erudição sobrepor-se a uma história que tem de ser daquele indivíduo»
Fonte: Read more: http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=466#ixzz1TbKh0at5
por: Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer