sexta-feira, março 28, 2008

Mulheres, literatura e outras confusões...

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Bill Keane
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POLÊMICA
Mulheres, literatura e outras confusões...
Vânia Vasconcelos especial para O POVO

A escritora e professora de literatura Vânia Vasconcelos questiona abordagem da escritora Tércia Montenegro em artigo sobre literatura feminina publicado no Vida & Arte Cultura no dia 9 deste mês

'Posso ouvir minha voz feminina:estou cansada de ser homem. Ângela nega pelos olhos:a woman left lonely. Finda-se o dia.' (Ana Cristina César)
'Assim criamos limites e certezas onde nos movem os passos cadenciados da dança atávica e óbvia' (Maria Helena Cardoso)

Tomo da voz sonora dessas duas poetisas do nosso tempo, a primeira, carioca e já finda precocemente; a segunda, em plena produção de versos com cheiro do Cariri e porque vou falar dessa relação entre mulheres e literatura, objeto hoje de estudo, incômodo e euforia. Desde que as mulheres começaram a falar em público, escrever e assinar o que escreviam, fez-se muita confusão em torno disso. Antes, era preciso pedir permissão para falar e escrever. Bem, é verdade que poucas chegavam a fazê-lo e as ousadas que o conseguiam, tinham temas e público bem restritos, tempos ásperos. Enfim, muitas árvores e tabus derrubados,cá estamos nós em pleno século XXI, quando a menina Juno já sabe que não deve criar o filho que não gerou no sentimento, preocupadas com a possibilidade de parecer inferior o talento literário de quem se define mulher, gritando contra qualquer marca de identidade feminina num texto. Bons escritores são bons escritores e pronto, independente do sexo que os define, mas sabemos que, historicamente, nós, mulheres, fomos ensinadas a acreditar que sempre que afirmamos o que somos, somos classificadas numa categoria inferior. Simone de Beauvior dizia que mulher não nasce mulher e sim se torna, aprende ser o que chamam mulher. Compreendo o medo da condição, da palavra e do preconceito, mas é preciso definir melhor verdades e confusões históricas que nos impõem ao longo dessa nossa trajetória de nebulusidades conceituais.

Reitero, um escritor ou escritora é talentoso porque o é, porque consegue transformar em imagens lingüísticas o que nem sabemos dizer, porque nos traduz para nós mesmos; porque resgata-nos a alma perdida e cria beleza gratuita e plena enenhum bom escritor se esgota numa de suas faces. Lima Barreto não foi um bom escritor por sua voz mulata, mas isso, sem dúvida compõe parte importante para definir sua obra, assim com Rosa não foi apenas o sertão,embora quando se fale de tudo o mais, que construiu em seu texto, seja sempre necessário passar pelo sertão mítico que criou. Assim, Clarice não foi a grande escritora apenas por sua voz feminista, por seus temas em torno da mulher, mas é difícil falar de seus textos ignorando esse aspecto.

Pois bem, quando se trata hoje da especificidade do estudo de gênero na literatura,nada há aí de redutor, ao contrário,há a amplificação necessária à construção da crítica cultural que se pretende em uma sociedade e um tempo que finalmente começam a compreender que nenhuma verdade possui apenas um ou mesmo dois lados. Quando, na década de 80, a ANPOLL e a ABRALIC abrigaram em seus encontros as comunicações e grupos de trabalho relativos ao estudo específico do tema Mulher e Literatura, sinalizava-se aí a decisão de pesquisadores (professores, mestrandos e doutorandos) em pesquisar a imagem feminina construída em textos literários sob um olhar diverso que só aquele momento poderia propiciar, um olhar alimentado pela ideologia feminista que ajudou a prática de tantas mulheres na construção de um mundo mais justo, onde podemos, por exemplo, escrever, publicar, estudar, discutir.

Daí surgiria uma das linhas de pesquisa de gênero,que chama-se crítica feminista e analisa, em textos de homens e mulheres, o perfil ideológico da construção das personagens e discurso sob este viés; outra linha é a do cânone, que busca resgatar do limbo escritoras ignoradas ou outras pouco estudadas, não por falta de qualidade, mas pela simples verdade histórica de que conhecemos, lembramos e estudamos mais frequentemente o que nos é mais ofertado pelo mercado, que ainda é predominantemente masculino; há ainda uma linha que trabalha numa abordagem mais ligada à psicanálise e que, pode gerar alguma idéia que se aproxime do que se possa compreender como uma análise sexista so texto.

Há quem não queira misturar literatura com causas tão profundas da escrita para que não se perca o rumo mesmo do quê literário. Nesse último caso, portanto,pode-se questionar a pesquisa pela simples discordância do método, mas isso não invalida a necessidade de que se estabeleça a pesquisa de gênero, a investigação de como foram construídas as mulheres de papel no nosso tempo, de como estão finalmente se escrevendo as mulheres hoje em seus papéis, essa investigação faz parte do nosso tempo, negá-la é negar a própria evolução da investigação crítica do pensamento desse nosso mundo tão marcado pelas diferenças, quanto pelo disfarce de que elas existem. Não há como negar o que somos hoje, fruto do nosso passado. A história que nos formou na linguagem e em tudo mais tem a marca da discriminação entre os sexos. A diferença de sentido entre as sentenças 'homem público' e 'mulher pública', para dar apenas um exemplo diz o quanto e como a linguagem com a qual construimos as idéias é marcada pela diferença discriminatória. Só encarando a diferença, creio, podemos superá-la e, um dia, escrever e ler sem mais pensar nisso.

Vânia Vasconcelos é escritora e professora de litetura da Uece no campus de Quixadá
FONTE: O POVO Online - CE,Brazil

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