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Mídia Sem Máscara entrevista Mendo Castro Henriques - Parte I
por Editoria MSMem 02 de março de 2008
Resumo: Na primeira parte da entrevista, discute-se a influência da filosofia de E. Voegelin, seu possível legado e suas contribuições à ciência política.
© 2008 MidiaSemMascara.org ApresentaçãoA convite da É Realizações Editora, o filósofo, professor e escritor português Mendo Castro Henriques estará em São Paulo entre os dias 04 e 06 de março de 2008, primeiramente ministrando palestra sobre o livro “Hitler e os Alemães”, de Eric Voegelin, publicado pela É Realizações em lançamento simultâneo às “Reflexões Autobiográficas”, do mesmo autor. Sobre este último livro, e na mesma data, a palestra será proferida pelo filósofo Olavo de Carvalho, via videowebconferência. Em seguida, nos dias 05 e 06, o Prof. Mendo Castro Henriques ministrará um Curso de Introdução à Filosofia Política de Eric Voegelin, também no auditório da É Realizações. Para maiores informações, clique aqui.
Nascido em dezembro de 1953, o Prof. Mendo Henriques é doutor em Filosofia Política pela Universidade Católica Portuguesa e autor, tradutor e coordenador de edição de uma bela dúzia de livros de grande importância, dentre os quais, e para o momento, destacamos aqueles dedicados à obra de Voegelin e sua filosofia: “A Filosofia Civil de Eric Voegelin” de M.C. Henriques e Estudos de Ideias Políticas – De Erasmo a Nietzsche”, de Eric Voegelin, tradução e abreviação de M.C. Henriques. Cremos, entretanto, que isto não define nem apresenta por completo nosso entrevistado de hoje, a julgar por suas declaradas áreas de investigação, que se concentram na filosofia, certamente, mas abrangem também cidadania, história das idéias, lusofonia, história militar e prospectiva estratégica. Esperamos que nesta entrevista ao Mídia Sem Máscara o Prof. Mendo Henriques possa sentir-se à vontade para discorrer sobre tão variados assuntos, ainda que o foco inicial e principal incida sobre a obra de Voegelin, em especial sobre os títulos citados logo de início.
Aos leitores do MSM, além dos votos de bom proveito, fazemos apenas um alerta: o Prof. Mendo responde numa língua que talvez já não reconheçamos muito bem; é a língua portuguesa.
***
MSM: A obra de Eric Voegelin (1901-1985) começou a ser conhecida da comunidade acadêmica portuguesa já no início ou em meados dos anos 80. Em 1992, a sua dissertação de doutoramento "A Filosofia Civil de Eric Voegelin" praticamente inaugura a filosofia voegeliniana na universidade portuguesa. A inclusão de Voegelin no currículo da Universidade Católica Portuguesa é fato que, por si só, a coloca muito acima da soma de todas as universidades brasileiras, lugares (ou nenhures) onde até mesmo Platão e Aristóteles têm sido vistos sob variados disfarces. De fato, no Brasil, e a despeito da meritória tradução de "A Nova Ciência da Política" por José Viegas e das muitas palestras e cursos livres do filósofo Olavo de Carvalho, Voegelin é ainda virtualmente um desconhecido no meio acadêmico; não há nem sequer uma rejeição a Voegelin; é ignorância no sentido literal. Isto posto, lhe perguntamos: hoje já é possível falar numa geração de discípulos portugueses de Eric Voegelin, a exemplo daqueles americanos e alemães que organizaram os 34 volumes das Collected Works? Que conseqüências o senhor imagina ou espera de tal geração?
Mendo Castro: É cedo para falar de uma geração de discípulos portugueses apesar do trabalho já feito e de publicações que se avizinham, nomeadamente a edição em 4 volumes de uma História da Filosofia Política - Dos Megalitos aos Astronautas, em que alternarão textos de Eric Voegelin com o de estudiosos portugueses que cobrem áreas e épocas que o grande filósofo político germano americano não abrangeu. Mas decerto que vamos a tempo de preparar uma geração portuguesa e brasileira de voegelinianos. Talvez tenha chegado a hora de, ponderando o ciclo da jovem democracia portuguesa pós 1974 que inaugurou o que Samuel Huntington chamou de ‘terceira vaga’ e, eventualmente, da jovem democracia brasileira pós-1985, redescobrirmos as constantes seculares do nosso consensualismo. Do ponto de vista português, importa reencontrar a tradição democrática portuguesa. São esses factores democráticos da formação de Portugal como escreveu Jaime Cortesão que levaram às Cortes de 1254, e à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa após as Cortes de Coimbra em 1383, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab onmibus decideri debet. Esse modernismo do país permitiu-lhe ser a vanguarda da expansão europeia no mundo. A restauração da independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular que serviram de inspiração a todos os consensualistas para resistirem ao absolutismo iluminista. E a Revolução Liberal de 1820 foi qualificada como restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses. No Brasil creio ter sido esse o papel de José Bonifácio de Andrada, por exemplo. Mas isso eu tenho de aprender com os brasileiros. Com tudo isto presente, diria que só é novo aquilo que se esqueceu.
MSM: A sua primeira vinda ao Brasil, a convite da É Realizações, se dá quando esta publica as traduções de duas importantes obras de Voegelin, "Hitler e os Alemães" e "Reflexões Autobiográficas". Sem querer adiantar a sua palestra, fale-nos um pouco acerca desses dois livros e da importância que o senhor atribui à sua publicação no Brasil. Mendo Castro: São duas escolhas felizes de obras muito diferentes. Sobre ‘Hitler e os Alemães’, escrevi que não é um assunto do passado porque a consciência humana vive na tensão permanente entre o tempo e os valores espirituais eternos. E o que está eternamente vivo tem que ser preservado e defendido no presente. Outra das razões da grande actualidade deste livro é que ele constitui não apenas um exorcismo dos ‘demónios’ que praticam crimes, como dos “estúpidos” que os permitem e esquecem. Tal como Alexandre Soljhenitsyn em Arquipélago Gulag, Eric Voegelin quer tirar do esquecimento tanto os que resistiram como os que ofenderam. É o mesmo esforço de anamnese, o esforço de ser ‘senhor de si’ e de ‘dominar o presente’ para elevar o nível de concentração espiritual mediante a filosofia que permite julgar a ordem e a desordem históricas concretas. Quanto a Autobiografia é daqueles livros que quanto mais curto melhor, pois as coisas simples não precisam de muito discurso barroco para serem comunicadas. A vida de Eric Voegelin é essencialmente a sua vida académica. A sua passagem para a América em 1939, depois o regresso à Alemanha em 1958 e novo retorno à América em 1969 resultaram que a vida de um filósofo politico deve acompanhar a das suas ideias. Ele fez esse shuttle entre as duas metades do Ocidente porque as acreditava unidas por príncipios comuns da herança classica e cristã. Hoje vivemos uma situação mais complexa porque qualquer das metades do Ocidente tem sido vítima de complexos de inferioridade e urge estabelecer os princípios clássicos e cristãos nos quadros das democracias nacionais e numa situação de poliarquia intenacional. Saírem no Brasil estes dois livros, pela mão do Olavo de Carvalho e do Edson Filho é para mim um privilégio poder partilhar. Não o digo só por grande amizade para com ambos; digo-o, também, por acreditar na missão da lusofonia. E os símbolos são-nos favoráveis pois estamos em ano do bicentenário de chegada de D. João no Brasil.
MSM: A despeito da opinião de alguns críticos de que a filosofia política de Voegelin estaria separada da política “real”, Ellis Sandoz afirma que uma das razões que levaram Voegelin a retornar à Alemanha em 1958 era o seu desejo de estabelecer em Munique um instituto que pudesse ajudar a trazer a democracia constitucional americana para a Alemanha; e que verdadeiramente, as palestras de Voegelin, que deram origem a "Hitler e os Alemães" são uma prova de que a filosofia política voegeliniana não estava separada da política, mas direcionada ao cerne das questões da ordem política contemporânea. Uma vez que a filosofia de Voegelin tenha talvez um caráter mais diagnóstico do que terapêutico, por assim dizer, o senhor concorda com a interpretação de Ellis Sandoz?
Mendo Castro: Escreveu Henri Bergson em 1911 que, em filosofia, ‘um problema bem colocado é um problema resolvido’. Significa isso que não existe ‘filosofia aplicada’ no mesmo sentido em que se fala da tecnologia como ‘ciência aplicada’. A filosofia pode parecer teórica mas está sempre a pensar no concreto; seus diagnósticos são já indicações terapêuticas, conforme bem sugere a sua pergunta. O próprio termo ‘Ideia’, é proveniente do vocabulário medico helénico onde significava ‘sintoma’. Contudo, este carácte eminentemente prático da filosofia é mal compreendido tanto por dificuldades de comunicação como pela dispersão das linguagens filosóficas que se encontram divididas entre si por um apartheid. A oportunidade de melhorar esta situação prende-se com a revalorização das filosofias clássicas – platónica e aristotélica – em que os conceitos não são generalidades que depois se aplicam automaticamente a situações concretas mas os conceitos são universais – e nesse sentido concretos do ponto de vista da unidade – que se verificam em circunstâncias particulares concretas. É a famosa dialéctica do Uno e do Múltiplo. Se acrescentarmos a esta postura o crivo da filosofia crítica tal como foi elaborada no séc. XX por Bernard Lonergan teremos as bases para que a filosofia reencontre o seu lugar ao sol. Mas não vai ser fácil, não!”
MSM: Talvez a contribuição mais valiosa de Voegelin à nossa compreensão do fenômeno do nazismo tenha sido a sua análise da dimensão espiritual do problema. O senhor poderia comentar esta dimensão espiritual, ou ainda, a dimensão da desordem espiritual, primeiramente na Alemanha de Hitler, mas no Ocidente contemporâneo como um todo?
Mendo Castro: Em 1964 Voegelin considerou «o problema alemão central do nosso tempo: a ascensão de Hitler ao poder». A sua explicação gira em torno do ‘princípio antropológico; uma sociedade é um ser humano em ponto grande’ e a sua qualidade está determinada pelo carácter moral dos seus membros. A Alemanha dos anos 30 revelava uma profunda deficiência espiritual, intelectual e moral. Hermann Broch escreveu que existia uma misteriosa cumplicidade no mal entre os que não pareciam ser maus. Karl Kraus e Thomas Mann disseram que uma população torna-se ‘populaça’ ao esquecer a capacidade humana de procurar a verdade. Havia falta de humanidade, ‘estupidez radical’, segundo Hannah Arendt. Só depois de bem estabelecidos estes principios é que se compreendem as análises clássicas sobre origens, evolução e queda do regime nacional socialista, e os dados que a economia, a ciência politica acumularam sobre a origem dessa revolução alemã. A situação actual no que se chama o mundo ocidental é muito diferente. Não faltam actualmente pessoas responsáveis com o sentido da busca da verdade. São escassos os fundamentalistas europeus e americanos. A personalidade moral do indivíduo não está ameaçada pela mediocridade das componentes pessoais, sociais e históricas que se verificava na década de 30. O problema reside muito mais na ingovernabilidade provocada pelos sistemas “midiocráticos” em que a democracia é abusada pelos midia, e em que as sondagens comandam as decisões dos governantes, tomadas a pensar no curto prazo e não no chão moral da história, nem no princípio de responsabilidade de que falou Hans Jonas.
MSM: Uma das grandes contribuições de Eric Voegelin foi a de fazer claríssima distinção entre ideologias e filosofia, gnosticismo e ordem. Ele se dizia avesso aos "ismos", incluindo o conservadorismo, que ele considerava uma "ideologia secundária", de reação às ideologias revolucionárias, o que lhe rendeu algumas duras críticas de parte dos conservadores americanos, ao mesmo tempo em que estes eram seus maiores admiradores. Mas Voegelin parece ter resolvido a questão ao reafirmar sua admiração pela tradição constitucional anglo-americana, que tinha como base uma experiência histórica filosoficamente fundamentada. O senhor poderia comentar essa controvérsia especialmente à luz dos rumos políticos dos Estados Unidos e do Reino Unido, que parecem ter sucumbido a uma grande série de "ismos", incluindo aqui também o fundamentalismo islâmico, o abortismo e uma aparente renúncia à fé e à prática cristã? Se lhe for possível e se o senhor desejar estender seus comentários à União Européia, nós lhe ficaríamos muito gratos.
Mendo Castro: Eric Voegelin actualizou uma linha de pensamento da política que, partindo de Platão, Aristóteles e Cícero, passa por Tomás de Aquino e se revigora com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e todos os que aceitam a perspectiva pluralista do politico. Por isso rejeitam a omnipotência do Estado, e os pessimismos e optimismos antropológicos de herança maquiavélica e hobbesiana, e da herança de Rousseau ou Ernst Bloch. Nessa tradição clássica e cristã cruzam-se propostas de filosofia política, onde pouco importam as profundas dicotomias entre conservadores e progressistas que ocupam quase todo o debate nos midia. Para esta grande conversação, podem contribuir as correntes de matriz liberal, de marca ética, como Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e o krausismo em Portugal e Espanha. As correntes de matriz socialista podem evoluir do federalismo de Proudhon à doutrina das guildes, às teses britânicas do self-govemment e ao cooperativismo. As correntes conservadoras podem reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do Estado soberano absoluto e indivisivel. Mesmo algumas teses progressistas podem retomar as perspectivas da sociedade civil sem Estado, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicíssimas teses da polis de há vinte e cinco séculos. É por tudo isto que Eric Voegelin era avesso aos -ismos e se identificou, ele que tinha raízes germânicas, com a tradição constitucional anglo-americana. Mas embora sem o mesmo sucesso histórico, existem outras tradições constitucionais que tiveram e poderão voltar a ter uma palavra. [O ano de ] 1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma ‘portugalização’ de toda a Espanha, para usar uma imagem de Miguel de Unamuno. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789. Mas isto já é história contrafactual como Niall Fergunson anda fazendo, história de ‘ses’. Infelizmente, em Portugal triunfou a Razão de Estado sobretudo com Sebastião José de Carvalho e Melo que não por acaso carimbou os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no Index do despotismo iluminista.
MSM: O professor e autor americano Michael P. Federici enumera sete principais contribuições de Voegelin à ciência política e ao conhecimento humano: (1) a restauração da ciência política por meio da crítica do positivismo; (2) um diagnóstico da crise do Ocidente; (3) análise crítica do totalitarismo e dos movimentos ideológicos modernos; (4) recuperação dos símbolos e experiências originais [engendering] da ordem; (5) uma filosofia da história; (6) uma filosofia da consciência (7) uma moldura filosófica de abertura à transcendência que pode ser usada para restaurar a ordem à civilização ocidental. Dentre essas contribuições, o senhor poderia destacar aquelas que julga mais importantes, ou ainda, gostaria de acrescentar algum outro componente?
Mendo Castro: Parece-me um excelente resumo. Eu destacaria a filosofia da consciência, porque é a base para todas as outras e acrescentaria que Eric Voegelin veio realizar o que ficou por cumprir no pensamento português e espanhol, após as teses de Francisco Suárez serem utilizadas, mas logo descontinuadas em 1640. Escassos anos após a morte de Suárez, e com excepção dos países católicos na Europa e suas colónias sul-americanas, a Escolástica tornou-se uma curiosidade cada vez mais remota. Ao longo do séc. XVIII, a Escolástica foi objecto de escárnio nos países marcados pelo iluminismo e pelo nacionalismo secularizado. A Reforma quebrara a ingenuidade da existência na história da civilização ocidental que agora tinha que enfrentar o problema da sua historicidade. Com o processo imanentista de secularização, a vida espiritual viu-se progressivamente excluída da ordem pública, um facto apontado pelos escassos pensadores que entenderam a historicidade das Igrejas e a ideia de religião não dogmática, como foram Bodin, Pascal, Hobbes e Espinosa. Em 1700, o declínio do espírito na vida pública era tão evidente que Giambattista Vico descreveu os ciclos de civilização como corsi i ricorsi que duram o tempo de um mito. Um filósofo político deve sempre proceder a um inventário dos poderes concretos e elaborar uma filosofia da história que encontre a ordem significativa na variedade da existência política. E isso implica todos os restantes pontos assinalados nesse resumo de Federici.
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MSM: A obra de Eric Voegelin (1901-1985) começou a ser conhecida da comunidade acadêmica portuguesa já no início ou em meados dos anos 80. Em 1992, a sua dissertação de doutoramento "A Filosofia Civil de Eric Voegelin" praticamente inaugura a filosofia voegeliniana na universidade portuguesa. A inclusão de Voegelin no currículo da Universidade Católica Portuguesa é fato que, por si só, a coloca muito acima da soma de todas as universidades brasileiras, lugares (ou nenhures) onde até mesmo Platão e Aristóteles têm sido vistos sob variados disfarces. De fato, no Brasil, e a despeito da meritória tradução de "A Nova Ciência da Política" por José Viegas e das muitas palestras e cursos livres do filósofo Olavo de Carvalho, Voegelin é ainda virtualmente um desconhecido no meio acadêmico; não há nem sequer uma rejeição a Voegelin; é ignorância no sentido literal. Isto posto, lhe perguntamos: hoje já é possível falar numa geração de discípulos portugueses de Eric Voegelin, a exemplo daqueles americanos e alemães que organizaram os 34 volumes das Collected Works? Que conseqüências o senhor imagina ou espera de tal geração?
Mendo Castro: É cedo para falar de uma geração de discípulos portugueses apesar do trabalho já feito e de publicações que se avizinham, nomeadamente a edição em 4 volumes de uma História da Filosofia Política - Dos Megalitos aos Astronautas, em que alternarão textos de Eric Voegelin com o de estudiosos portugueses que cobrem áreas e épocas que o grande filósofo político germano americano não abrangeu. Mas decerto que vamos a tempo de preparar uma geração portuguesa e brasileira de voegelinianos. Talvez tenha chegado a hora de, ponderando o ciclo da jovem democracia portuguesa pós 1974 que inaugurou o que Samuel Huntington chamou de ‘terceira vaga’ e, eventualmente, da jovem democracia brasileira pós-1985, redescobrirmos as constantes seculares do nosso consensualismo. Do ponto de vista português, importa reencontrar a tradição democrática portuguesa. São esses factores democráticos da formação de Portugal como escreveu Jaime Cortesão que levaram às Cortes de 1254, e à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa após as Cortes de Coimbra em 1383, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab onmibus decideri debet. Esse modernismo do país permitiu-lhe ser a vanguarda da expansão europeia no mundo. A restauração da independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular que serviram de inspiração a todos os consensualistas para resistirem ao absolutismo iluminista. E a Revolução Liberal de 1820 foi qualificada como restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses. No Brasil creio ter sido esse o papel de José Bonifácio de Andrada, por exemplo. Mas isso eu tenho de aprender com os brasileiros. Com tudo isto presente, diria que só é novo aquilo que se esqueceu.
MSM: A sua primeira vinda ao Brasil, a convite da É Realizações, se dá quando esta publica as traduções de duas importantes obras de Voegelin, "Hitler e os Alemães" e "Reflexões Autobiográficas". Sem querer adiantar a sua palestra, fale-nos um pouco acerca desses dois livros e da importância que o senhor atribui à sua publicação no Brasil. Mendo Castro: São duas escolhas felizes de obras muito diferentes. Sobre ‘Hitler e os Alemães’, escrevi que não é um assunto do passado porque a consciência humana vive na tensão permanente entre o tempo e os valores espirituais eternos. E o que está eternamente vivo tem que ser preservado e defendido no presente. Outra das razões da grande actualidade deste livro é que ele constitui não apenas um exorcismo dos ‘demónios’ que praticam crimes, como dos “estúpidos” que os permitem e esquecem. Tal como Alexandre Soljhenitsyn em Arquipélago Gulag, Eric Voegelin quer tirar do esquecimento tanto os que resistiram como os que ofenderam. É o mesmo esforço de anamnese, o esforço de ser ‘senhor de si’ e de ‘dominar o presente’ para elevar o nível de concentração espiritual mediante a filosofia que permite julgar a ordem e a desordem históricas concretas. Quanto a Autobiografia é daqueles livros que quanto mais curto melhor, pois as coisas simples não precisam de muito discurso barroco para serem comunicadas. A vida de Eric Voegelin é essencialmente a sua vida académica. A sua passagem para a América em 1939, depois o regresso à Alemanha em 1958 e novo retorno à América em 1969 resultaram que a vida de um filósofo politico deve acompanhar a das suas ideias. Ele fez esse shuttle entre as duas metades do Ocidente porque as acreditava unidas por príncipios comuns da herança classica e cristã. Hoje vivemos uma situação mais complexa porque qualquer das metades do Ocidente tem sido vítima de complexos de inferioridade e urge estabelecer os princípios clássicos e cristãos nos quadros das democracias nacionais e numa situação de poliarquia intenacional. Saírem no Brasil estes dois livros, pela mão do Olavo de Carvalho e do Edson Filho é para mim um privilégio poder partilhar. Não o digo só por grande amizade para com ambos; digo-o, também, por acreditar na missão da lusofonia. E os símbolos são-nos favoráveis pois estamos em ano do bicentenário de chegada de D. João no Brasil.
MSM: A despeito da opinião de alguns críticos de que a filosofia política de Voegelin estaria separada da política “real”, Ellis Sandoz afirma que uma das razões que levaram Voegelin a retornar à Alemanha em 1958 era o seu desejo de estabelecer em Munique um instituto que pudesse ajudar a trazer a democracia constitucional americana para a Alemanha; e que verdadeiramente, as palestras de Voegelin, que deram origem a "Hitler e os Alemães" são uma prova de que a filosofia política voegeliniana não estava separada da política, mas direcionada ao cerne das questões da ordem política contemporânea. Uma vez que a filosofia de Voegelin tenha talvez um caráter mais diagnóstico do que terapêutico, por assim dizer, o senhor concorda com a interpretação de Ellis Sandoz?
Mendo Castro: Escreveu Henri Bergson em 1911 que, em filosofia, ‘um problema bem colocado é um problema resolvido’. Significa isso que não existe ‘filosofia aplicada’ no mesmo sentido em que se fala da tecnologia como ‘ciência aplicada’. A filosofia pode parecer teórica mas está sempre a pensar no concreto; seus diagnósticos são já indicações terapêuticas, conforme bem sugere a sua pergunta. O próprio termo ‘Ideia’, é proveniente do vocabulário medico helénico onde significava ‘sintoma’. Contudo, este carácte eminentemente prático da filosofia é mal compreendido tanto por dificuldades de comunicação como pela dispersão das linguagens filosóficas que se encontram divididas entre si por um apartheid. A oportunidade de melhorar esta situação prende-se com a revalorização das filosofias clássicas – platónica e aristotélica – em que os conceitos não são generalidades que depois se aplicam automaticamente a situações concretas mas os conceitos são universais – e nesse sentido concretos do ponto de vista da unidade – que se verificam em circunstâncias particulares concretas. É a famosa dialéctica do Uno e do Múltiplo. Se acrescentarmos a esta postura o crivo da filosofia crítica tal como foi elaborada no séc. XX por Bernard Lonergan teremos as bases para que a filosofia reencontre o seu lugar ao sol. Mas não vai ser fácil, não!”
MSM: Talvez a contribuição mais valiosa de Voegelin à nossa compreensão do fenômeno do nazismo tenha sido a sua análise da dimensão espiritual do problema. O senhor poderia comentar esta dimensão espiritual, ou ainda, a dimensão da desordem espiritual, primeiramente na Alemanha de Hitler, mas no Ocidente contemporâneo como um todo?
Mendo Castro: Em 1964 Voegelin considerou «o problema alemão central do nosso tempo: a ascensão de Hitler ao poder». A sua explicação gira em torno do ‘princípio antropológico; uma sociedade é um ser humano em ponto grande’ e a sua qualidade está determinada pelo carácter moral dos seus membros. A Alemanha dos anos 30 revelava uma profunda deficiência espiritual, intelectual e moral. Hermann Broch escreveu que existia uma misteriosa cumplicidade no mal entre os que não pareciam ser maus. Karl Kraus e Thomas Mann disseram que uma população torna-se ‘populaça’ ao esquecer a capacidade humana de procurar a verdade. Havia falta de humanidade, ‘estupidez radical’, segundo Hannah Arendt. Só depois de bem estabelecidos estes principios é que se compreendem as análises clássicas sobre origens, evolução e queda do regime nacional socialista, e os dados que a economia, a ciência politica acumularam sobre a origem dessa revolução alemã. A situação actual no que se chama o mundo ocidental é muito diferente. Não faltam actualmente pessoas responsáveis com o sentido da busca da verdade. São escassos os fundamentalistas europeus e americanos. A personalidade moral do indivíduo não está ameaçada pela mediocridade das componentes pessoais, sociais e históricas que se verificava na década de 30. O problema reside muito mais na ingovernabilidade provocada pelos sistemas “midiocráticos” em que a democracia é abusada pelos midia, e em que as sondagens comandam as decisões dos governantes, tomadas a pensar no curto prazo e não no chão moral da história, nem no princípio de responsabilidade de que falou Hans Jonas.
MSM: Uma das grandes contribuições de Eric Voegelin foi a de fazer claríssima distinção entre ideologias e filosofia, gnosticismo e ordem. Ele se dizia avesso aos "ismos", incluindo o conservadorismo, que ele considerava uma "ideologia secundária", de reação às ideologias revolucionárias, o que lhe rendeu algumas duras críticas de parte dos conservadores americanos, ao mesmo tempo em que estes eram seus maiores admiradores. Mas Voegelin parece ter resolvido a questão ao reafirmar sua admiração pela tradição constitucional anglo-americana, que tinha como base uma experiência histórica filosoficamente fundamentada. O senhor poderia comentar essa controvérsia especialmente à luz dos rumos políticos dos Estados Unidos e do Reino Unido, que parecem ter sucumbido a uma grande série de "ismos", incluindo aqui também o fundamentalismo islâmico, o abortismo e uma aparente renúncia à fé e à prática cristã? Se lhe for possível e se o senhor desejar estender seus comentários à União Européia, nós lhe ficaríamos muito gratos.
Mendo Castro: Eric Voegelin actualizou uma linha de pensamento da política que, partindo de Platão, Aristóteles e Cícero, passa por Tomás de Aquino e se revigora com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e todos os que aceitam a perspectiva pluralista do politico. Por isso rejeitam a omnipotência do Estado, e os pessimismos e optimismos antropológicos de herança maquiavélica e hobbesiana, e da herança de Rousseau ou Ernst Bloch. Nessa tradição clássica e cristã cruzam-se propostas de filosofia política, onde pouco importam as profundas dicotomias entre conservadores e progressistas que ocupam quase todo o debate nos midia. Para esta grande conversação, podem contribuir as correntes de matriz liberal, de marca ética, como Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e o krausismo em Portugal e Espanha. As correntes de matriz socialista podem evoluir do federalismo de Proudhon à doutrina das guildes, às teses britânicas do self-govemment e ao cooperativismo. As correntes conservadoras podem reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do Estado soberano absoluto e indivisivel. Mesmo algumas teses progressistas podem retomar as perspectivas da sociedade civil sem Estado, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicíssimas teses da polis de há vinte e cinco séculos. É por tudo isto que Eric Voegelin era avesso aos -ismos e se identificou, ele que tinha raízes germânicas, com a tradição constitucional anglo-americana. Mas embora sem o mesmo sucesso histórico, existem outras tradições constitucionais que tiveram e poderão voltar a ter uma palavra. [O ano de ] 1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma ‘portugalização’ de toda a Espanha, para usar uma imagem de Miguel de Unamuno. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789. Mas isto já é história contrafactual como Niall Fergunson anda fazendo, história de ‘ses’. Infelizmente, em Portugal triunfou a Razão de Estado sobretudo com Sebastião José de Carvalho e Melo que não por acaso carimbou os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no Index do despotismo iluminista.
MSM: O professor e autor americano Michael P. Federici enumera sete principais contribuições de Voegelin à ciência política e ao conhecimento humano: (1) a restauração da ciência política por meio da crítica do positivismo; (2) um diagnóstico da crise do Ocidente; (3) análise crítica do totalitarismo e dos movimentos ideológicos modernos; (4) recuperação dos símbolos e experiências originais [engendering] da ordem; (5) uma filosofia da história; (6) uma filosofia da consciência (7) uma moldura filosófica de abertura à transcendência que pode ser usada para restaurar a ordem à civilização ocidental. Dentre essas contribuições, o senhor poderia destacar aquelas que julga mais importantes, ou ainda, gostaria de acrescentar algum outro componente?
Mendo Castro: Parece-me um excelente resumo. Eu destacaria a filosofia da consciência, porque é a base para todas as outras e acrescentaria que Eric Voegelin veio realizar o que ficou por cumprir no pensamento português e espanhol, após as teses de Francisco Suárez serem utilizadas, mas logo descontinuadas em 1640. Escassos anos após a morte de Suárez, e com excepção dos países católicos na Europa e suas colónias sul-americanas, a Escolástica tornou-se uma curiosidade cada vez mais remota. Ao longo do séc. XVIII, a Escolástica foi objecto de escárnio nos países marcados pelo iluminismo e pelo nacionalismo secularizado. A Reforma quebrara a ingenuidade da existência na história da civilização ocidental que agora tinha que enfrentar o problema da sua historicidade. Com o processo imanentista de secularização, a vida espiritual viu-se progressivamente excluída da ordem pública, um facto apontado pelos escassos pensadores que entenderam a historicidade das Igrejas e a ideia de religião não dogmática, como foram Bodin, Pascal, Hobbes e Espinosa. Em 1700, o declínio do espírito na vida pública era tão evidente que Giambattista Vico descreveu os ciclos de civilização como corsi i ricorsi que duram o tempo de um mito. Um filósofo político deve sempre proceder a um inventário dos poderes concretos e elaborar uma filosofia da história que encontre a ordem significativa na variedade da existência política. E isso implica todos os restantes pontos assinalados nesse resumo de Federici.
FONTE: Mídia Sem Máscara - São Paulo,SP,Brazil
http://www.midiasemmascara.com.br/
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