terça-feira, maio 13, 2008

Vista por felino, burguesia oriental é igual à ocidental


LITERATURA JAPONESA
Vista por felino, burguesia oriental é igual à ocidental
Noemi Jaffe da Folhapress
Embora inacreditavelmente precisa, esta definição soa como uma generalização que se aplica somente à burguesia ocidental

Georg Lukács, em sua Teoria do Romance, define o romance moderno como "a história da busca de valores autênticos de um personagem problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida". Embora inacreditavelmente precisa, esta definição soa como uma generalização que se aplica somente à burguesia ocidental. Mas não. No Japão posterior à Restauração Meiji, depois de 1870, já bem mais ocidentalizado, esta definição sumária também é surpreendentemente cabível.

No romance Eu Sou um Gato, de Natsume Soseki, escrito no início do século 20, a não ser pelas descrições dos costumes estranhos a nós, não se percebe que estamos lendo uma narrativa oriental. O narrador é um gato que tem o dom da telepatia e que, por isso, penetra nas mentes de seu amo (um professor fracassado), de sua ama (uma mulher estúpida, agressiva, mas submissa) e relata minuciosamente todas as conversas que ouve na casa onde se aboletou.

As mentes em que penetra e as conversas que ouve são, invariavelmente, ridículas. Montanhas e montanhas de mentiras, hipocrisia, vaidade e platitudes. E o foco narrativo felino vai nos mostrando, de um ponto de vista privilegiado, como a pequena burguesia japonesa do início do século passado é tão carente de valores autênticos e de alguma imanência de sentido quanto aquela mostrada nos romances de Balzac, Machado de Assis ou Tolstói.

O gato mesmo não é muito melhor que os humanos: megalômano, irônico e impiedoso, delata a calvície de sua ama e os pêlos no nariz de seu amo, questiona a onipotência e a onisciência de Deus, ridiculariza os intelectuais japoneses (um estudante promissor está desenvolvendo um doutorado sobre "a influência dos raios ultravermelhos sobre o movimento eletrodinâmico das pupilas das rãs"), sofre com a feiúra da nudez humana e define esses humanos como "seres que criam coisas sem finalidade para depois sofrer por tê-las criado".

Relevância do nariz

O próprio autor do romance, um professor de literatura inglesa depressivo, foi muito influenciado por autores como William James e, perceptivelmente, Laurence Sterne, com cujo romance Tristram Shandy este Eu Sou um Gato guarda muitas semelhanças. A mais gritante delas é a obsessão dos personagens e as dezenas de páginas usadas para a descrição de um nariz.

Alguém ainda precisa fazer um estudo sobre a relevância do nariz para a literatura realista européia (e agora também japonesa). Gogol, Sterne, Pirandello e também Soseki dedicam páginas monomaníacas a esse órgão que, convenhamos, é um prato cheio para ridicularizações contra a burguesia, sobretudo do ponto de vista de um gato que não possui essa estranha protuberância no meio do rosto.

Se concordarmos com uma das grandes influências de Soseki, William James, que a "verdade quer dizer verificação, e a verificação, atual ou possível, é a definição de verdade", então chegaremos à triste conclusão, junto com o gato, de que a verdade da condição humana (pelo menos da burguesa), quando verificada detidamente, não vai muito além de pêlos no nariz, brigas por amenidades, busca obsessiva do supérfluo e vaidade, tudo vaidade.

SERVIÇO

Eu sou um gato - Obra do escritor japonês Natsume Soseki (1867-1916).
Tradução: Jefferson José Teixeira.
Lançamento Estação Liberdade. 488 págs.
Preço: R$ 62.


FONTE (photo include)- O POVO Online - CE,Brazil

Nenhum comentário:

Postar um comentário