sábado, maio 10, 2008

Para Zuenir Ventura, espírito libertário de Maio de 68 resiste

04/05/2008 - 10h24
Para Zuenir Ventura, espírito libertário de Maio de 68 resiste
LAURA CAPRIGLIONE
da Folha de S.Paulo
A nostalgia dos tabus que organizavam a vida social, as saudades da família estruturada em casamentos que obrigatoriamente duravam para sempre, o repúdio às drogas, a ojeriza à política e o ostracismo das utopias igualitárias --um sonho "regressista", uma onda conservadora parece ter varrido como tsunami os rastros deixados por 1968 no Brasil.
"Só parece. A tendência é atribuir a 1968 o papel de berço de todos os desregramentos, todas as permissividades, todos os desrespeitos à regras e hierarquias, a crise da família", admite o jornalista Zuenir Ventura, ele mesmo um legítimo "meia-oito", além de autor de alentado tratado comportamental sobre a época e suas heranças ("1968 - O Ano Que Não Acabou" e "1968 - O Que Fizemos de Nós").
"Mas o respeito à diferença, os direitos das minorias e das mulheres são tributários diretos dos acontecimentos de 68. Não por acaso, a Parada Gay, que em São Paulo, por exemplo, chega a mobilizar centenas de milhares de pessoas, tem tanto do espírito libertário de 1968, apesar de ser um movimento bem mais recente", diz.
"Falar em direitos das minorias, em crítica ao autoritarismo, em liberdade sexual e em direito ao prazer é falar de 1968. Essas são as principais heranças daquele ano fatídico."
Para Zuenir, é claro que há também o legado maldito. "As drogas, por exemplo. Aquela utopia ingênua de que as drogas seriam uma forma de abertura da consciência a novas percepções, defendida por gente como o escritor Aldous Huxley [1894-1963] a partir de suas experiências com a mescalina, e pelo americano Timothy Leary [1920-96] a partir de trabalhos com o ácido lisérgico. Isso acabou. A droga provou ser um instrumento de morte desde que foi apropriada pelas multinacionais do tráfico."
Para o jornalista, outra herança negativa foi a "violência edificante". Essa idéia levou boa parte das organizações contrárias à ditadura para a luta armada, com seu farto menu de ações, como seqüestros, assaltos a bancos e atentados.
Protagonista de 1968, quando encenou a peça "Roda Viva", de Chico Buarque, cuja temporada paulistana encerrou-se depois do ataque de um grupo autodenominado "Comando de Caça aos Comunistas", que espancou atores e destruiu cenários, o diretor José Celso Martinez Correa, 71, do Teatro Oficina, lembra da época como "o momento em que as pessoas se deram conta de que estavam vivas, de que não precisavam mais se conformar com os papéis predeterminados que lhes queriam impor; foi quando as pessoas perceberam que poderiam sair desses túmulos para viver em liberdade."
José Celso entrega a origem da idéia: a obra de Guy Debord (1931-94) "A Sociedade do Espetáculo", lançada na França "não por acaso" em 1967, um ano antes de tudo.
Segundo José Celso, depois da "revolução" de 1968, iniciou-se um movimento furioso de restauração da ordem, representado de imediato pela tortura e por prisões patrocinadas no Brasil pelo governo militar. Depois, a classe média desenvolveu "uma espécie de agorafobia e se enfurnou nos condomínios fechados vigiados por câmeras, nos shoppings, nos carros blindados. Saiu da ágora, abandonou as ruas".
Idéia enganosa
Mas, diz ele, "neste momento, a 'Sociedade do Espetáculo' está em crise. É a crise do império americano, das suas guerras, e de seu modo de vida. As pessoas querem ir de novo para as ruas".
Um dos dirigentes da chamada "Passeata dos Cem Mil", manifestação realizada no Rio de Janeiro em 26 de junho e que marcou o movimento estudantil de 1968, o então presidente da União Metropolitana de Estudantes Vladimir Palmeira, 63, diz que o principal elemento agregador de todos os "meia-oitos" que fizeram os "cem mil" era "a certeza de que se estava mudando a vida, de que se podia recusar tudo".
Segundo Palmeira, "mesmo assim é enganosa a idéia de que todo mundo era de esquerda, todas as meninas eram Leila Diniz e por aí vai". "O que aconteceu é que as vanguardas tornaram-se emblemas da época."
Socialista, ex-exilado político, Palmeira hoje está preocupado com a questão da reprodução humana.
"Cada vez o homem reproduz-se menos. Cada vez mais, a ciência aumenta a expectativa de vida. Ora, a morte permite a melhoria da espécie, renova-a com novos nascimentos; se o ritmo em que isso acontece decai, a decorrência é o aumento do conservadorismo. Tenho certeza de que chegaremos a um impasse."
Palmeira apóia-se no texto "O Sexo e a Morte" (ed. Nova Fronteira), do pesquisador francês Jacques Ruffié. Um autêntico "meia-oito" diria: "É viagem".
Esse tipo de assunto nunca freqüentou as rodas de conversas em 68, o próprio ex-dirigente estudantil admite. "Mudou tudo. A classe operária perdeu o papel de protagonista que teve na história da civilização industrial. Agora, um novo agente transformador terá de surgir, refletindo inclusive as questões da sobrevivência do homem no planeta. Pena que não vou viver para ver o fim desse filme", diz.
Mas nem todos os "meia-oitos" mudaram tanto de ponto de vista. No Primeiro de Maio, uma centena deles reuniu-se no bonito prédio que já foi do Deops (Departamento de Ordem Política e Social) para inaugurar o "Memorial da Resistência", em homenagem aos que foram presos, torturados e mortos no lugar.
Encerrados os discursos, um grupo musical puxou o hino da Internacional Socialista --"de pé, ó vítimas da fome; de pé, famélicos da terra...". Os antigos militantes cantaram juntos, alguns chorando.
Ottoni Fernandes Jr., 62, subchefe da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, era um dos presentes. Em 1968, ele compunha a diretoria do Centro Acadêmico da Física da USP, o Cefisma, quando aconteceram as grandes passeatas, quando se conseguiu inaugurar o primeiro bloco de apartamentos mistos no Crusp (Conjunto Residencial da USP, onde os blocos masculinos eram rigorosamente separados dos femininos) e quando foram formadas as primeiras comissões paritárias de alunos.
"Eu sou contrário a essa tendência de folclorizar 68, reduzindo-o a um movimento de malucos, drogados e porra-loucas. Não era e não foi assim até porque havia uma ditadura que, da mesma forma como perseguia o cabeludo, perseguia a moça liberada sexualmente e o militante de esquerda. Foi ela que politizou todo o movimento e colocou todos juntos nas passeatas pela democracia. Não discutir 68 com esse pano de fundo é mistificação", diz o jornalista Alípio Freire, 62.
"The answer my friend, is blowin' in the wind..." Todo mundo sabe que o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) é fã do hit-hino da campanha pelos direitos civis nos EUA, que conheceu seu momento mais dramático no assassinato de Martin Luther King, em 4/4/68.
Ao lado do pessoal que depois de 68 foi para a luta armada, Suplicy cita Luther King para falar da não-violência e do amor ao próximo que ele insiste com o MST que é a melhor forma de luta. Bem 68.
No mesmo Primeiro de Maio, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, também "meia-oito", foi procurado pela Folha para falar do que foi feito dele e de suas convicções. Gil estava incomunicável em Rio Branco (AC), onde defendeu que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheça a ayahuasca, uma bebida alucinógena sacramental, como patrimônio imaterial da cultura. Sem o tráfico ter-se metido nessa área, a ayahuasca parece ainda gozar da aura que outras drogas já perderam. Muito 68.
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FONTE: Folha Online - São Paulo,SP,Brazil
http://www1.folha.uol.com.br/

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