sábado, maio 10, 2008

O romantismo revolucionário

O romantismo revolucionário
08-Mai-2008

O espírito de 68 é uma bebida potente, uma mistura apimentada e desejável, um coquetel explosivo composto por diversos ingredientes. Um dos seus componentes - e não o menor - é o romantismo revolucionário, ou seja, um protesto cultural contra os fundamentos da civilização industrial/capitalista moderna, o seu produtivismo e o seu consumismo, e uma associação singular única e sem género, entre subjectividade, desejo e utopia - o "triângulo conceitual" que o define, segundo Luisa Passerine, 1968[1]. Texto de Michael Löwy[2], publicado pela revista Espaço Académico. [3]
O romantismo não é, somente, uma escola literária do início do século XIX - como se pode, ainda, ler em vários manuais - mas uma das principais formas da cultura moderna. Enquanto estrutura sensível e visão do mundo, ele manifesta-se em todas as esferas da vida cultural - literatura, poesia, arte, música, religião, filosofia, ideias políticas, antropologia, historiografia e as outras ciências sociais. Seguiu na metade do século XVIII - pode-se considerar Jean-Jacques Rousseau como "o primeiro dos românticos" -, corre através da Frühromantik alemã, Hölderlin, Chateaubriand, Hugo, os pré-rafaelistas ingleses, William Morris, o simbolismo, o surrealismo e o situacionismo, e está, ainda, connosco, no início do século XXI. Pode ser definido como uma revolta contra a sociedade capitalista moderna, em nome de valores sociais e culturais do passado, pré-modernos, e um protesto contra o desencantamento moderno do mundo, a dissolução individualista/competitiva das comunidades humanas, e o triunfo da mecanização, mercantilização, reificação e quantificação. Rasgado entre a sua nostalgia do passado e os seus sonhos de futuro, pode tomar formas regressivas e reaccionárias, propondo um retorno às formas de vida pré-capitalistas, ou uma forma revolucionária/utópica, que não preconiza uma volta, mas um desvio pelo passado em direcção ao futuro; neste caso, a nostalgia do paraíso perdido é investida na esperança de uma nova sociedade.[4]
Entre os autores mais admirados da geração rebelde dos anos 60, podem-se encontrar quatro pensadores que pertencem, sem dúvida alguma, à tradição romântica revolucionária e que tentaram, como os surrealistas uma geração anterior, combinar - cada um à sua maneira, individual e singular - a crítica marxista e a crítica romântica da civilização: Henri Lefebvre, Guy Debord, Herbert Marcuse e Ernst Bloch. Enquanto os dois primeiros tinham a simpatia dos rebeldes franceses, o terceiro era mais conhecido nos EUA, e o último, sobretudo, na Alemanha. Sabendo-se que a maior parte dos jovens, que saíram às ruas de Berkeley, Berlim, Milão, Paris ou México, nunca leu esses filósofos, mas as suas ideias eram difundidas de mil e uma maneiras, nos panfletos e nas palavras de ordem do movimento. Isso vale, destacadamente, na França, para Debord e os seus amigos situacionistas, aos quais o imaginário de Maio de 68 deve alguns dos seus sonhos mais audaciosos, e algumas das suas fórmulas mais tocantes ("Imaginação ao poder"). Entretanto, não é a "influência" desses pensadores que explica o espírito de 68, mas, preferencialmente, o contrário: a juventude rebelde procurava autores que poderiam fornecer ideias e argumentos para os seus protestos e desejos. Entre eles e o movimento aconteceu, no decorrer dos anos 60 e 70, uma espécie de "afinidade electiva" cultural: eles descobriram-se e influenciaram-se mutuamente, num processo de reconhecimento recíproco.[5]
No seu memorável livro sobre o Maio de 68, Daniel Singer capturou perfeitamente o significado de "acontecimentos": "Foi uma rebelião total, colocando em questão, não tal ou tal aspecto da sociedade existente, mas os seus objectivos e meios. Tratava-se de uma revolta mental contra o estado industrial existente, tanto contra a estrutura capitalista como contra o tipo de sociedade de consumo que ele criou. Isso emparelhava-se com uma repugnância tocante a tudo o que vinha do alto, contra o centralismo, a autoridade, a ordem hierárquica".[6] A Grande Recusa - expressão que Marcuse emprestou a Maurice Blanchot - da modernização capitalista e do autoritarismo - define bem o ethos político e cultural do Maio de 68 bem como, provavelmente, dos seus equivalentes nos EUA, México, Itália, Alemanha, Brasil, e outros.
É preciso assinalar que esses movimentos não foram motivados por uma crise qualquer da economia capitalista: ao contrário, era a época dita das "trinta gloriosas" (1945-75), dos anos de crescimento e prosperidade capitalista. Isso é importante para evitar uma armadilha a de se esperar revoltas anti-capitalistas, somente - ou, sobretudo - como resultado de uma recessão ou de uma crise mais ou menos catastrófica da economia: não há correlação directa entre os altos e baixos da Bolsa e a ascensão ou declínio das lutas - ou das revoluções - anti-capitalistas! Acreditar no contrário seria um regresso em direcção ao tipo de "marxismo" economicista que predominava nas Segunda e Terceira Internacionais.
Limitarei os meus comentários ao caso francês, que conheço melhor. Se pegarem, por exemplo, o célebre panfleto distribuído, em Março de 68, por Daniel Cohn-Bendit e os seus amigos, "Por que sociólogos?", encontra-se a rejeição mais explícita de tudo o que se apresenta sob o signo de "modernização"; esta é identificada como não sendo outra coisa além da planificação, racionalização e produção de bens de consumo segundo as necessidades do capitalismo organizado. Diatribes análogas contra a tecnoburocracia industrial, a ideologia do progresso e a rentabilidade, os imperativos económicos e as "leis da ciência" estão presentes em muitos documentos da época. O sociólogo Alain Touraine, um observador distanciado do movimento, justifica este aspecto de Maio de 68, utilizando conceitos de Marcuse: "A revolta contra a ‘unidimensionalidade' da sociedade industrial gerada pelos aparelhos económicos e políticos não pode explodir sem comportar aspectos ‘negativos', ou seja, sem opor a expressão imediata de desejos às coerções, que se davam por naturais, do crescimento, da modernização".[7] A isso se deve acrescentar o protesto contra as guerras imperialistas e/ou coloniais, e uma poderosa onda de simpatia - não sem ilusões "românticas" - em direcção aos movimentos de libertação dos países oprimidos do Terceiro Mundo. Enfim, last but not least, em muitos desses jovens militantes, uma profunda desconfiança para com o modelo soviético, considerado como um sistema autoritário/burocrático, e, para alguns, como uma variante do mesmo paradigma de produção e consumo do Ocidente capitalista.
O espírito romântico de Maio de 68 não é composto, somente, de "negatividade", de revolta contra um sistema económico, social e político, considerado como desumano, intolerável, opressor e filistino, ou actos de protesto tais como o incêndio dos carros, esses símbolos desprezados da mercantilização capitalista e do individualismo possessivo.[8] Ele está, também, carregado de esperanças utópicas, sonhos libertários e surrealistas, "explosões de subjectividade" (Luisa Passerini), em resumo, do que Ernst Bloch chamava Wunschbilder, "imagens-de-desejo", que são não somente projectadas num futuro possível, uma sociedade emancipada, sem alienação, reificação ou opressão (social ou de género), mas também, imediatamente, experimentadas em diferentes formas de prática social: o movimento revolucionário como festa colectiva e como comunidades humanas livres e igualitárias, a afirmação partilhada da sua subjectividade (sobretudo entre as feministas); a descoberta de novos métodos de criação artística, desde os cartazes subversivos e irreverentes, até as inscrições poéticas e irónicas nos muros.
A reivindicação do direito à subjectividade estava, inseparavelmente, ligada ao impulso anti-capitalista radical que atravessava, de um lado ao outro, o espírito de Maio de 68. Esta dimensão não deve ser subestimada: ela permitiu - a frágil aliança entre os estudantes, os diversos grupúsculos marxistas ou libertários e os sindicalistas que organizaram, apesar das suas direcções burocráticas, - a maior greve geral da história da França.
Na sua importante obra sobre "o novo espírito do capitalismo", Luc Boltanski e Eve Chiapello distinguem dois tipos - no sentido weberiano do termo - de crítica anti-capitalista - cada uma com a sua combinatória complexa de emoções, de sentimentos subjectivos, de indignações e de análises teóricas - que, de uma maneira ou de outra, convergiram em Maio de 68: I) a crítica social, desenvolvida pelo movimento operário tradicional, que denuncia a exploração dos trabalhadores, a miséria das classes dominadas, e o egoísmo da oligarquia burguesa que confisca os frutos do progresso; II) a crítica artista, apoiada em valores e opções de base do capitalismo, e que denuncia, em nome da liberdade, um sistema que produz alienação e opressão.[9]
Examinemos de mais perto o que Boltanski e Chiapello compreendem sobre o conceito de crítica artista do capitalismo: uma crítica do desencantamento, da inautenticidade e da miséria da vida quotidiana, da desumanização do mundo pela tecnocracia, da perda de autonomia, enfim, do autoritarismo opressor dos poderes hierárquicos. Mais do que libertar as potencialidades humanas para a autonomia, a auto-organização e a criatividade, o capitalismo submete os indivíduos à "gaiola de aço" da racionalidade instrumental, e da mercantilização do mundo. As formas de expressão desta crítica são emprestadas ao repertório da festa, do jogo, da poesia, da libertação da palavra, enquanto que a sua linguagem é inspirada por Marx, Freud, Nietzsche e pelo surrealismo. Ela é anti-moderna na sua medida onde insiste no desencantamento, e modernista quando dá ênfase à libertação. Podem-se encontrar as suas ideias já nos anos 1950 em pequenos "grupos de vanguarda" artística e política - como "Socialismo ou Barbárie" (Cornélius Castoriadis, Claude Lefort) ou o situacionismo (Guy Debord, Raoul Vaneigem) - antes que elas explodissem no grande dia na revolta estudantil em 68.[10]
De facto, o que Boltanski e Chiapello chamam "crítica artista" é fundamentalmente o mesmo fenómeno que eu designo como crítica romântica do capitalismo. A principal diferença é que dois sociólogos tentam explicar por "um modo de vida boémia", pelos sentimentos de artistas e de dândis, formuladas de maneira exemplar nos escritos de Baudelaire. [11] Isso me parece uma ponderação muitíssimo estreita: o que eu chamo de romantismo anti-capitalista não é, somente, mais antigo, mas tem uma base social muito mais ampla. Ele é implantado não somente entre artistas, mas intelectuais, estudantes, mulheres, e todos os tipos de grupos sociais cujo estilo de vida e a cultura são, negativamente, afectados pelo processo destrutor da modernização capitalista.
Outro aspecto problemático da experimentação, aliás, destacável pela riqueza das suas propostas, de Boltanski e Chiapello, é a sua tentativa de demonstrar que, no decorrer dos últimos decénios, a crítica artista, separando-se da crítica social, integrou e recuperou pelo novo espírito do capitalismo, pelo seu novo estilo de direcção, fundado sobre os princípios de flexibilidade e liberdade, que propõe uma maior autonomia no trabalho, mais criatividade, menos disciplina, e menos autoritarismo. Uma nova elite social, frequentemente activa no decorrer dos anos 60 e atraída pela crítica artista, rompeu com a crítica social do capitalismo - considerada como "arcaica" e associada à velha esquerda comunista - e aderiu ao sistema, ocupando lugares dirigentes.[12]
Evidentemente, há muita verdade nesse quadro, porém, mais que uma continuidade unida e sem choques entre os rebeldes de 68 e os novos dirigentes, ou entre os desejos e as utopias de Maio e a última ideologia capitalista, vejo uma profunda ruptura ética e política - às vezes na vida do mesmo indivíduo. O que foi perdido nesse processo, nessa metamorfose, não é um detalhe, mas o essencial: o anti-capitalismo... Uma vez despojada do seu próprio conteúdo anti-capitalista - diferente do da crítica social -, a crítica artista ou romântica deixa de existir enquanto tal, perde toda a significação e torna-se um simples ornamento. Sabendo-se que, a ideologia capitalista pode integrar elementos "artistas" ou "românticos" no seu discurso, mas foram previamente esvaziados de todo o conteúdo social significativo para tornarem-se uma forma de publicidade. Há pouco em comum entre a nova "flexibilidade" industrial e os sonhos utópicos libertários de 68. Falar, como o fazem Boltanski e Chiapello, de um "capitalismo esquerdista"[13], parece-me um puro contra-senso, uma contradictio in adject.
Qual é, então, a herança de 68 hoje? Pode-se concordar com Perry Anderson que o movimento foi duravelmente vencido, que vários dos seus participantes e dirigentes tornaram-se conformistas, e que o capitalismo - na sua forma neoliberal - tornou-se, no decorrer dos anos 1980 e 1990, não somente triunfante, mas como o único horizonte possível.[14] Mas, parece-me que assistimos, no transcorrer dos últimos anos, à ascensão, à escala planetária, de um novo e vasto movimento social, com um forte componente anti-capitalista. Evidentemente, a história nunca se repete, e seria, também, em vão o absurdo de atingir um "novo Maio de 68" em Paris ou noutro lugar: cada nova geração rebelde inventa a sua própria e singular combinatória de desejos, utopias e subjectividades.
A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, inspirada pelo princípio que "o mundo não é uma mercadoria", que tomou as ruas de Seattle, Praga, Porto Alegre, Génova é - inevitavelmente - muito diferente dos movimentos dos anos 60. Ela está longe de ser homogénea: enquanto que os participantes mais moderados ou pragmáticos acreditam, ainda, na possibilidade de regular o sistema, uma larga secção do "movimento dos movimentos" é, abertamente, anti-capitalista, e nos seus protestos pode-se encontrar, como em 68, uma fusão única entre as críticas romântica e marxista da ordem capitalista, das suas injustiças sociais e da sua avidez mercantil. Pode-se, indiscutivelmente, perceber certas analogias com os anos 60 - a poderosa tendência anti-autoritária, ou libertária - mas, também, diferenças importantes: a ecologia e o feminismo, que estavam, ainda, a nascer em Maio de 68, são, agora, componentes centrais da nova cultura radical, enquanto que as ilusões sobre o "socialismo realmente existente" - quer seja Soviético ou Chinês - praticamente desapareceram.
Este movimento está, somente, a começar, e é impossível prever como se desenvolverá, mas já mudou o clima intelectual e político em certos países. Ele é realista, o que quer dizer que ele pede o impossível...
Michael Löwy, tradução para português de Celuy Roberta Hundzinski
[1] L. Passerini, "‘Utopia' and Desire", Thesis Eleven, n° 68, February 2002, pp. 12-22.
[2] Sociólogo, CNRS
[3] Publicado pela revista Contretemps 22, Maio 2008. Mai 68: un monde en révoltes. Dossier coordonné par Antoine Artous, Jean Ducange, Lilian Mathieu e anteriormente editado em inglês no Thesis Eleven, n° sobre 68, Fevereiro de 2002
[4] Verificar sobre este assunto no meu livro, com Robert Sayre, Révolte et Mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité, Paris, Payot, 1992.
[5] Envio à análise do conceito de afinidade electiva no meu livro Rédemption et Utopie. Le Judaïsme libertaire en Europe centrale, une étude d'affinité élective, Paris, Presses Universitaires de France, 1986.
[6] Daniel Singer, Prelude to Revolution. France in May 1968, New York, Hill and Wang, 1970, p. 21.
[7] Alain Touraine, Le Mouvement de Mai ou le Communisme utopique, Paris, Seuil, 1969, p. 224. Verificar, também, o interessante artigo de Andrew Feenberg, "Remembering the May events", Theory and Society, n° 6, 1978.
[8] Eis o que escrevia Henri Lefebvre num livro publicado em 1967: "Nesta sociedade onde a coisa tem mais importância que o homem, há um objecto rei, um objecto-piloto: o automóvel. A nossa sociedade, dita industrial, ou técnica, possui esse símbolo, coisa dotada de prestígio e poder. (...) o carro é um instrumento incomparável e talvez irremediável, nos países neo-capitalistas, de desculturalização, de destruição por dentro do mundo civilizado"; H. Lefebvre, Contre les technocrates, 1967, reeditado em 1971 com o título Vers le cybernanthrope, Paris, Denoël, p.14.
[9] Luc Boltanski, Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999, pp. 244-245.
[10] Ibid., pp. 245-246, 86.
[11] Ibid., pp. 83-84.
[12] Ibid., pp. 283-287.
[13] Ibid., p. 290.
[14] Refiro-me às intervenções orais de P. Anderson nos debates por ocasião de um seminário sobre Maio de 68 em Florença, que possibilitou a publicação de um número da revista Thesis Eleven.

FONTE: Esquerda - Lisboa,Portugal

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