sábado, maio 10, 2008

Contos de Pirandello são mais do que rascunho de suas peças

Contos de Pirandello são mais do que rascunho de suas peças
08/05 - 15:15 - Jonas Lopes
Em uma das histórias de “40 novelas”, de Luigi Pirandello, apropriadamente intitulada “Personagens”, o narrador, escritor que concede audiências a personagens de livros futuros, afirma sobre suas criações: “Freqüentemente eu os trato feito cachorros; e eles sabem que não me contento facilmente, que eu sou cruelmente curioso, que não me deixo levar por aparências nem me impressiono com conversa fiada”.
Soa amargo? Pois é essa a posição que o próprio Pirandello assume em relação a seus personagens. Mais do que amargura, no entanto, o que há nesse estilo sádico é deboche, um humor que tem tanto de compaixão quanto de cinismo. A obra do italiano, Prêmio Nobel de Literatura em 1934, remete o tempo todo a uma reflexão de Thomas Mann em “Doutor Fausto”: “a tragédia e a comédia brotam do mesmo tronco, bastando então que se modifique a iluminação para que uma se transforme na outra”.
Também nessas 40 narrativas curtas a comédia se encontra no limite da tragédia e vice-versa. Não à toa: elas foram escritas entre o final do século 19 e o início do século 20, período em que se popularizou o conceito de tragicomédia. É Pirandello quem manipula a iluminação que demarca um gênero e outro – isso quando não se são indistinguíveis, pois para o autor a vida parece ser uma tragédia divertida e uma comédia dolorosa. Em vários dos contos passamos das lágrimas ao riso em uma mudança de rumo que não estava anunciada. Transparece neles a transformação de Pirandello ao longo da carreira, desde o início mais próximo do realismo de escritores que o precederam até as características que o tornaram tão influente no século passado (vide a literatura pós-moderna e mesmo filmes como “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen): metalinguagem, abordagem alegórica, investigação do ego, incerteza entre realidade e ficção. A identidade é a grande fonte de conflito de seus heróis. Somos quem somos, quem pensamos que somos, quem os outros pensam que somos ou quem gostaríamos de ser? Se mudarmos nossos nomes, passamos a ser outra pessoa? A personalidade é algo indestrutível e imutável ou uma máscara frágil que pode ser substituída?
Ao lado de contemporâneos como James Joyce, Thomas Mann e Marcel Proust, além do conterrâneo Italo Svevo, Pirandello investigou o homem moderno, fraturado e fragmentado, refém da psicanálise e mais propenso a se deixar levar pelo mundo do que o contrário. Fora as centenas de textos curtos que escreveu (as chamadas “novelas para um ano”), ficou famoso com o romance “O falecido Mattia Pascal” (Editora Nova Alexandria), em que um homem aproveita que todos pensam que ele está morto para assumir outra persona. Do seu trabalho como dramaturgo, destaca-se a peça “Seis personagens à procura de autor” (Ed. Peixoto Neto), na qual, como o título avisa, seis personagens invadem o ensaio de uma peça implorando que sua história seja encenada. E, por fim, em “Um, nenhum e cem mil” (Ed. CosacNaify) um jovem ricaço vê a vida desmoronar ao descobrir que seu nariz pende para a direita. As três obras possuem um tom de absurdo que dá ironia cômica aos questionamentos metafísicos.
Quanto às “40 novelas”, o tradutor Maurício Santanna Dias, em seu prefácio bastante elucidativo, esclarece que se tratam de um laboratório para a obra teatral de Pirandello. Todas elas deram origem, mais tarde, a alguma peça. Não devem, porém, ser tratadas como rascunhos; a semente do brilhantismo das peças está ali – da mesma maneira que, mal comparando, encontramos algo do Nelson Rodrigues dramaturgo em “A vida como ela é...”. Três histórias, por exemplo, são a matriz de “Seis personagens à procura de autor”: “Personagens” (1906), “Tragédias de um personagem” (1911) e “Conversas com personagens” (1915) – todas com o embate da peça vindoura entre vida, arte e o que existe entre elas.
Uma pessoa “verdadeira” é mais real do que uma criação literária, em teoria. Mas e se essa pessoa não deixar algum tipo de marca, como um personagem literário? D. Quixote, sob certos aspectos, é uma presença mais viva e palpável para nós do que milhões de anônimos mortos ao longo da história. Por outro lado, os personagens que comparecem às audiências do narrador de “Personagens” “queriam ser belos e moralmente irreprocháveis”. Tal perfeição não combina com o perfil falível do ser humano.
Os contos mais antigos são menos abstratos e abertamente filosóficos. Também trazem protagonistas em descompasso com os valores sociais, e que com isso colocam em dúvida a validade de sua existência. Vários deles vivem para outrem, caso do caipira de “Limões da Sicília” (1900), que chega à cidade grande para reencontrar a noiva que não vê há anos. Ela, agora, é uma cantora de sucesso e figura onipresente na burguesia local, e mal lembrava da existência do antigo amor. Ainda assim, ele se dedica a ela, humilha-se (em vão) para tentar conseguir ao menos um sorriso. Em outros casos, os personagens são, antes de qualquer coisa, excêntricos: um deles (de “A verdade”, 1912) é acusado de assassinar a esposa e fica feliz por poder se apresentar no tribunal vestido com suas roupas de domingo. Acaba convencendo o juiz de que deve ser condenado apenas para deixar clara a “verdade” do caso. O hilário Biagio Speranza, de “A senhora Speranza” (1902), resolve se casar com a senhoria obesa apenas para garantir que não vai cometer a “besteira” de se casar com alguma jovem beldade por amor.
Volta a confusão entre verdade e fantasia em “A senhora Frola e o senhor Ponza, seu genro” (1917). Um funcionário se muda para um vilarejo, trazendo consigo a esposa e a sogra, e coloca a mãe em uma casa separada da filha. Ela alega que ele tem ciúmes da esposa; ele garante que a esposa morreu, a sogra endoidou e ele mantém a encenação por compaixão à velha. Nunca sabemos quem mente ou não, “qual dos dois é o doido, onde está o fantasma, onde a realidade”. Pirandello, ao mesmo tempo cronista do dia-a-dia e artesão das ficções no palco, faz da existência de suas crias um teatro, uma ficção, e do seu teatro um cotidiano corriqueiro. Como declarou certa vez: “Minha arte é cheia de compaixão por todos aqueles que iludem a si próprios. Mas é inevitável que esta compaixão seja seguida pelo escárnio feroz em relação a um destino que condena o homem à mentira”.
Serviço
“40 novelas”
Luigi Pirandello
503 páginas
Companhia das Letras
Preço sugerido: R$ 44,00
FONTE: Último Segundo - São Paulo,SP,Brazil

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