segunda-feira, março 17, 2008

Virginia Woolf a androginia como desconstrução

Virginia Woolf
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ainda a propósito do Dia Internacional da Mulher
Virginia Woolf a androginia como desconstrução
Eduardo de Assis Duarte Foi, salvo engano, Toril Moi (1988), no seu estudo clássico sobre a teoria literária feminista, quem primeiro atentou para o perfil desconstrutor das postulações de Virginia Woolf, tanto no que diz respeito à crítica dos valores e preconceitos estabelecidos a respeito das mulheres e tidos como verdade absoluta e universal, quanto no que toca à própria distinção entre masculino e feminino como pólos opostos e socialmente hierarquizados. Contrariando leituras feministas anteriores, em especial a de Elaine Showalter, Toril Moi destaca positivamente o constante deslocamento do sujeito nos escritos de Woolf – as “perspectivas móveis e pluralistas” (p. 22) – notando que tal procedimento implica a recusa de um eu identificado ao humanismo liberal, consequentemente à doxa masculina e patriarcal. Moi invoca a teoria de Derrida para assinalar o “estilo desconstrutor” adoptado pela autora de Orlando, que “expõe a natureza dual do discurso”, sempre infensa ao “significado transcendental” (p. 23) questionado pela desconstrução.
Em seguida, a pesquisadora assinala a “recusa do essencialismo” já presente nos textos de Woolf do início do século XX, caracterizando-a como precursora do feminismo desconstrucionista, tal como postulado por Julia Kristeva a partir dos anos 70, e fundado na negação da dicotomia metafísica entre masculino e feminino. Segundo Moi, a denúncia de Woolf a respeito da natureza “enganosa” das identidades de género, “antecipa em sessenta anos” (p. 27) a posição de Kristeva. E acrescenta que “uma combinação das teorias de Kristeva e Derrida encerraria a promessa de futuras interpretações feministas de Woolf” (p. 29), a quem chama de “escritora feminista genial” e “grande mãe e irmã” (p. 32). Moi conclui seu estudo, manifestando a esperança de que novas leituras se façam da escritora inglesa, a fim de evidenciar o pioneirismo e a contemporaneidade de seus escritos, marcados, já naquele tempo, pelo que se afirmará mais tarde como descentramento do sujeito e como abalo das hierarquias presentes no discurso da metafísica ocidental e nas práticas sociais e políticas nela ancoradas. De facto, já na própria arquitectura de Um tecto todo seu [2] (1985) – texto derivado de duas palestras proferidas em 1928 para plateias femininas – deparamo-nos com a disposição da autora em recusar o formato tradicional de exposições desse tipo: Woolf afirma que, tratando do tema mulher e literatura, “jamais conseguiria chegar a uma conclusão” (1985: 7), nem muito menos deixar com as jovens “uma pepita de verdade pura” (1985: 8):
Quando um tema é altamente controvertido – e assim é qualquer questão sobre o sexo [leia-se a mulher] -, não se pode pretender dizer a verdade. Pode-se apenas mostrar como se chegou a uma opinião que de facto se tenha. Pode-se apenas dar à plateia a oportunidade de tirar suas próprias conclusões, enquanto observa as limitações, os preconceitos e as idiossincrasias do orador. É provável que a ficção contenha aqui mais veracidade que fato. [...] Mentiras fluirão de meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade no meio delas; cabe a vocês buscarem essa verdade e decidirem se vale a pena conservar alguma porção dela. Caso contrário, naturalmente jogarão tudo na cesta de papéis e esquecerão do assunto. (1985: 8-9, grifos nossos) De início, vale ressaltar a androginia textual praticada pela autora. Valendo-se de “todas as liberdades e licenças de um romancista”, ela trasfega da conferência para o ensaio e deste para a ficção. Situa-se, pois, naquela tradição ensaística que não descarta a subjectividade e a fantasia. Woolf elege entre seus precursores Charles Lamb, cujo estilo elogia pelo “estalo relampejante de génio”, que deixa os textos “falhos e imperfeitos, mas estrelados de poesia.”(1985: 11-12) A passagem explicita o projecto condutor de Um tecto todo seu e contém quase uma poética do ensaio, segundo sua concepção.
A androginia textual, ao recusar o tom peremptório e a exortação inflamada, ao mesmo tempo em que coloca como “problema não solucionado” e “altamente controvertido” a questão da “verdadeira natureza da mulher” (1985: 8), desconstrói tanto a forma da conferência e da dissertação científicas quanto a crença numa verdade absoluta e universal a respeito de seu sexo. Ao substituir esta última pela verdade provisória e localizada, inscrita como opinião, pretende colocar sob suspeita não apenas as convicções da plateia, mas igualmente os discursos masculinos com os quais irá em seguida polemizar.
A “verdadeira natureza da mulher” é desviada do campo das certezas dogmáticas para a arena da controvérsia. Assim fazendo, a palestrante-ensaísta quer trazer a plateia para o palco da discussão, atribuindo a ela a incumbência de formalizar um sentido para suas reflexões. O pretenso valor de verdade de seu discurso sai da esfera autoral para situar-se no campo da leitura de cada um. Caberá aos receptores superar a atitude própria aos ouvintes do sermão, para, entre possíveis verdades e mentiras, idiossincrasias e preconceitos da oradora, construir suas próprias conclusões. O que se tem, pois, é o descentramento avant la lettre do sujeito autoral, cuja verdade não é dada a priori, mas deve, necessariamente, ser compartilhada com o ouvinte-leitor que, nesse movimento, ascende, de modo isônomo, ao panteão da autoria.
Essa postura logo se desdobra e se amplia. Woolf encara as jovens que a escutam como escritoras em potencial e, acto contínuo, lança a proposição básica da conferência. Mal disfarçada em “aspecto insignificante”, a tese surge com todas as letras: a mulher precisa de ter dinheiro e um tecto todo seu se pretende mesmo escrever ficção. (1985: 8, grifos nossos) A ensaísta desloca o tema da “verdadeira natureza da mulher” para o da “condição feminina”, entendida como “modus vivendi” no qual o universo estático da natureza, concebido metafisicamente, cede lugar à dinâmica das relações sociais.
A exigência de um quarto próprio e de uma renda anual emoldura a denúncia da pobreza das mulheres, de seu parco acesso à educação e ao mercado de trabalho. A mulher inglesa, alijada por lei da posse de bens materiais até 1881, ganha no texto de Woolf um retrato sem retoques: restrita ao mundo doméstico e à procriação, alheia aos negócios e à esfera pública, não acumulava bens, nem deixava heranças. “Fazer fortuna e ter treze filhos... nenhum ser humano suportaria isso” (1985: 31), pondera.
Ao lado da submissão/exploração económica, a exclusão cultural. Referindo-se implicitamente ao postulado marxista da “determinação em última instância do factor económico”, Woolf articula a perspectiva de género com a de classe social. Entende a formação cultural como resultado de investimentos, aponta os dízimos e doações do passado e as fellowships do presente como responsáveis pela existência da Universidade. Ao enfatizar a relação estreita entre a liberdade individual e a renda, desnuda a operação do sistema capitalista, reflecte sobre “o efeito que a pobreza exerce na mente”, arriscando afirmar que “não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, quando não se jantou bem.” (1985: 26) E prossegue:
Um génio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes operárias. Como então poderia ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? Não obstante, alguma espécie de talento deve ter existido entre as mulheres, como deve ter existido entre as classes operárias. (1985: 64, grifos nossos) Além de equiparar o trabalho doméstico ao trabalho operário, a escritora se apropria de uma afirmação corrente, feita talvez por um “bispo ou cavalheiro já falecido”, de que jamais mulher alguma alcançaria o génio de Shakespeare. E se apropria justamente para inverter o sentido misógino nela vigente. Eleitos como pressupostos básicos para a actividade literária, a renda e a propriedade surgem não como dádivas da natureza, mas como determinantes primordiais propiciadores da instrução e do quarto próprio, de preferência com chave na porta. O essencialismo responsável pelo confinamento da mulher à esfera doméstica vê-se questionado em seus fundamentos. O talento criador não é exclusivo dos homens bem postos na escala social, mas os meios para desenvolvê-lo, quase sempre, sim. Logo, o imperativo de se ter um tecto todo seu vincula-se não apenas ao aprimoramento de uma vocação artística. Mais que isto, diz respeito à própria afirmação da mulher com sujeito de sua história.
A tese do quarto próprio desenvolve-se em vários desdobramentos. A escritora responsabiliza a pobreza a que estiveram relegadas suas antepassadas pela debilidade da tradição literária feminina na Inglaterra. E, neste ponto, antecipa Simone de Beauvoir ao apontar a ausência de um sujeito feminino voltado para a escrita de sua história. Diante das vidas e obras de mulheres do passado relatadas por homens, afirma, num raro arroubo peremptório: “a mulher jamais escreve sua própria vida e raramente mantém um diário – existe apenas um punhado de cartas. Não deixou peças ou poemas pelos quais possamos julgá-la.” (1985: 59).
Neste instante, deixa clara a parcialidade e a insuficiência da historiografia então existente. Diante da constatação de que a Universidade e o Museu nada mais são do que espaços patriarcais, Woolf exorta as jovens estudantes a “reescreverem a história”, de modo a nela incluir o efectivo papel representado pelas mulheres. E, derridianamente, mas antes de Derrida, lança a indagação provocadora:
Mas por que não poderiam elas acrescentar um suplemento à história, dando-lhe, é claro, algum nome não conspícuo, de modo que as mulheres pudessem ali figurar sem impropriedade? Pois frequentemente as percebemos de relance na vida dos grandes homens, despachadas logo para segundo plano. (1985: 60, grifo nosso).
Vida Cultural
FONTE: Jornal de Angola - Luanda,Luanda,Angola

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