quinta-feira, março 13, 2008

A ética do cuidado e o sofrimento oculto no mundo feminino - a importância da educação afetiva para crianças


A ética do cuidado e o sofrimento oculto no mundo feminino - a importância da educação afetiva para crianças
Virgínia Schall - Colunista do Portal Uai

Em minha tese de doutorado, defendida na PUC-RJ em 1996, um dos aspectos observados na relação entre meninas pré-adolescentes foi a polaridade entre aquelas consideradas amigas e outras consideradas rivais. A conseqüência disso no cotidiano escolar aparecia como formação de “panelas”, isolamento de certas colegas, competições, comparações e por vezes grande sofrimento para algumas. Motivada pelo dia internacional da mulher (dia que perderá seu sentido atual quando as mulheres estiverem em eqüidade com os homens), trago aqui esse tema, sobretudo porque não percebo avanços no ambiente escolar para contemplar tais aspectos e não vejo outro espaço humano mais propício do que a escola para promover a evolução das relações humanas desde a infância.

Falar sobre relações humanas remete à “natureza humana”, a qual, como afirma o psicólogo e sociólogo alemão, Erich Fromm (1991), está condicionada pela história, é produto da cultura. Como afirma, a personalidade humana é “produto das relações do homem com o mundo, com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. Tanto as inclinações mais belas, como as mais baixas, não fazem parte de uma natureza humana fixada de uma vez por todas, mas são a conseqüência do processo social que cria o homem”.

O autor, cuja obra pode ser considerada como eco-ético-humanista, se opunha a toda dominação de homens sobre outros homens. E nos leva a refletir sobre as relações de poder não apenas do mundo masculino, mas entre as próprias mulheres. A reflexão sobre a relação entre as mulheres dá lugar a um mundo complexo, sutil e por vezes, pouco amistoso, permeado por sentimentos não somente afetuosos, mas, pontilhados de disputas, ciúmes e traição.

Pensando em como o processo social tem sido opressivo em relação às mulheres, percebe-se que, ao longo da história da humanidade, tal opressão só muito recentemente vem sendo questionada. É notório que só a partir da segunda metade do século XX, observa-se a legitimação de muitos dos direitos que as primeiras feministas buscaram como o controle da natalidade, o direito ao prazer e a participação política efetiva, dentre eles.

Entretanto, como assinala a psicanalista Carol Gilligan (1982), a mulher vive um conflito entre a questão moral da bondade (onde a virtude consiste em auto-sacrifício) e as questões adultas de responsabilidade e escolha. Cita casos que ilustram as dificuldades ainda atuais de várias mulheres de alcançar um senso de justiça que considere moral cuidar não só de outros, mas, de si mesmas, o que pode estar na raiz de seu silêncio e sua omissão, orientadas por uma ética do cuidado baseada na não-violência, de que ninguém deve ser prejudicado e assim, terminam por prejudicar a si próprias. E o cuidado com o outro, a importância dos relacionamentos aparece como crucial para as mulheres a ponto de que “a ameaça de perda de uma associação seja percebida não precisamente como uma perda de um relacionamento, mas, como algo próximo de uma total perda do eu” (Gilligan, 1982), ampliando o seu sofrimento e submissão nas relações cotidianas.

Isso também se reflete em suas relações com as companheiras de gênero. Sendo os relacionamentos essenciais para as mulheres, representam mais um elemento de conflito presente na vida feminina, retratando a dificuldade de convívio entre elas próprias e a subordinação a jogos de poder a que socialmente são arremessadas desde a infância. Se no mundo adulto persiste o que Piaget (1993) chama de “paradoxo do egocentrismo”, caracterizado pela falta de compreensão mútua entre homens e mulheres, levando-os a um respeito baseado em regras combinadas onde cada um joga mais ou menos como lhe agrada sem prestar atenção ao vizinho, é preciso considerar como se estabelecem as relações na infância, pois não só são diferentes as formas de interação entre meninas e meninos, como cada gênero difere no modo de perceber e resolver seus conflitos.

Se para as meninas, algumas colegas são dominadoras e esnobes, gerando sentimentos de rejeição e sofrimento, para os meninos, predomina a briga como recurso para enfrentar os colegas com os quais mantêm divergências. No mundo masculino, nessa idade, qualquer esbarrão vira provocação. E o controle escolar é explícito, movido por ações verbais e até físicas, expresso em castigos, reprimendas etc. No entanto, as relações femininas, movidas por jogos sutis ou ocultos, sequer são percebidas pela escola. As disputas são silenciosas, travadas por olhares e cochichos, a rejeição é experimentada, muitas vezes, em solidão, e a necessidade de enfrentar os medos escondida. Tudo isso encobre sofrimento, ressentimentos e dificuldades que podem refletir-se não apenas na vida pessoal, mas no desempenho acadêmico. Esse cenário favorece mágoas, egoísmo e mesquinharias que se extravasam no cotidiano da escola. O que se constata é que permanecemos distantes do ideal de respeito mútuo, cooperação e responsabilidade nos relacionamentos. Considerando que na infância é que têm lugar os processos para que tais valores e atitudes se desenvolvam, o papel da escola é fundamental.

Embora possamos estar aumentando o número de anos de vida, através da tecnologia moderna na área da saúde e melhores padrões de moradia, alimentação e cuidado com o corpo, o que se percebe é que a qualidade dessa vida prolongada está mesclada de conflitos sociais desde a infância, os quais podem estar na base das dificuldades e desigualdades que predominam no relacionamento adulto, requerendo novos modos de serem abordados. Um enfoque afetivo na escola, a maior participação de psicólogos no ambiente escolar, não somente como terapeutas para os alunos considerados especiais, mas desenvolvendo políticas e práticas pedagógicas coletivas para incluir os afetos na pauta curricular das salas de aula, pode ser um caminho promissor.
Referências:Fromm, Erich, Análise do Homem. Editora Guanabara, 1991, Rio de Janeiro.Gilligan C. Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rosa dos Tempos, 1982, Rio de Janeiro.

Virgínia Schall é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É mestre em Fisiologia pela UFMG e doutorado em Educação pela PUC do Rio. É pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz, chefe do Laboratório de Educação em Saúde do Centro de Pesquisa René Rachou (CPqRR/Fiocruz, MG) e membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do CPqRR. Sua experiência na área de Educação, tem ênfase em Educação em Saúde, atuando principalmente em prevenção de doenças infecciosas e parasitárias, promoção da saúde, saúde e comportamento. Para saber mais, clique aqui.

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FONTE (image include): UAI - Belo Horizonte,MG,Brazil

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